Dona de uma pequena confecção de roupas esportivas, Karolina Duarte se viu numa encruzilhada no fim do ano passado: precisava de dinheiro para expandir o negócio, mas não tinha crédito bancário e, quando conseguiu, a taxa era proibitiva. “Não compensava”, afirma.

Na semana passada, a microempresária finalmente levantou os R$ 10 mil de que precisava. A solução, porém, não veio de um banco. Karolina tomou empréstimo na recém-inaugurada Simple Credit, uma empresa simples de crédito (ESC). Foi a primeira operação já feita no Brasil nessa modalidade — que, segundo estimativas do governo e do próprio mercado, pode alcançar rapidamente R$ 20 bilhões em operações por ano.

A figura da empresa simples de crédito é nova. Foi criada em lei sancionada no fim de abril pelo presidente Jair Bolsonaro, e tem como objetivo aproximar investidores pessoa física de pequenos empresários que precisam de crédito. A ESC não é uma instituição financeira e não será regulada pelo Banco Central (BC), mas poderá conceder empréstimos e financiamentos com ou sem garantia.

O modelo tem semelhanças com as factorings — embora essas só atuem com a compra de direitos creditórios — e, por isso, deve atrair o interesse de várias delas. No entanto, há uma série de exigências que tornam a atuação sob esse novo formato mais restritiva que a das companhias de fomento mercantil.

Assim como as factorings, as empresas simples de crédito só podem operar com capital próprio dos sócios, que têm de ser pessoas físicas. Porém, as semelhanças param por aí. A atuação das novas empresas é regional: os empréstimos têm de ser feitos a empreendimentos do mesmo município ou das cidades limítrofes.

Além disso, as ESCs não podem exceder faturamento anual de R$ 4,8 milhões e a única fonte possível de receita é a cobrança de juros. Mas a diferença mais significativa é que todas as operações terão de ser validadas em uma câmara registradora, o que dá mais transparência aos processos e deve ajudar a mitigar riscos.

Boa oportunidade

Dona de uma empresa de cobranças, Elaine Ferri viu na ESC a oportunidade que vinha buscando para investir suas economias. “Tenho um dinheiro guardado na poupança e algumas aplicações na XP, mas não rende nada. Queria algo em que o risco não fosse tão alto e que o dinheiro fosse a própria matéria-prima”, diz a empresária. Ela e um sócio deram entrada na papelada para fundar a Simple Credit, em São Paulo, no dia seguinte ao da publicação da lei.

A primeira operação foi feita com uma conhecida de Elaine. A empresária era cliente da Cybersilk, a confecção de Karolina. O empréstimo, com prazo de 12 meses, foi fechado com taxa de 3,5% ao mês — metade do que a microempreendedora teria de pagar se tomasse dinheiro em seu banco.

“Tenho um excelente relacionamento com meu banco. Tenho investimentos, meu nome é limpo, tenho limite de crédito imobiliário, cartão de crédito, e mesmo assim não conseguia o empréstimo. Quando consegui, a taxa era de 7% ao mês”, afirma Karolina.

A ESC tem como público-alvo justamente empresas como a de Karolina, que despertam pouco interesse das grandes instituições financeiras e têm dificuldade no acesso a crédito. Dados do Sebrae mostram que cerca de 20% a 30% desses empresários têm empréstimo negado nos bancos. A proposta, inclusive, foi idealizada pelo ex-presidente do Sebrae Guilherme Afif Domingos, hoje assessor especial do ministro da Economia, Paulo Guedes.

Uma primeira versão do projeto começou a tramitar em 2015, e o modelo foi barrado por recomendação do BC. O regulador resistia a fiscalizar as novas companhias, e ao mesmo tempo havia questões sobre riscos sistêmicos.

Como funciona

Para contornar o problema, o que ficou definido é que caberá à Receita Federal receber as informações e checar se as empresas estão mesmo operando com recursos próprios e enquadradas no limite de faturamento.

A câmara registradora, por sua vez, garante a conformidade das operações, já que todos os contratos terão de ser validados, e gera arquivos para o Banco Central. O empréstimo da Simple Credit à Cybersilk, de Karolina, foi registrado na Central de Recebíveis (Cerc).

Eduardo Fontes, sócio da Cerc, diz que a registradora tem sido procurada diariamente por investidores interessados em criar ESCs ou em converter factorings existentes. “É um modelo que tende a viralizar”, diz.

Essa também é a expectativa do advogado José Luís Dias da Silva, consultor jurídico da Associação Nacional de Fomento Comercial (Anfac). De acordo com ele, existe potencial para que metade das 6 mil factorings em atividade hoje se convertam em ESCs ou sejam de sócios que constituam empresas do gênero (e atuem com um ou outro modelo conforme o caso). “Vai dar um grande fôlego às micro e pequenas empresas”, afirma.

Um grande incentivo para a conversão de factorings em empresas simples de crédito é o custo. A ESC será tributada pelo lucro presumido, com alíquota de 38,4% de imposto de renda, o que representa metade da tributação de uma companhia de fomento mercantil, calcula Silva.

O mercado de factorings movimenta R$ 200 bilhões por ano em giro de carteira, segundo a Anfac, e é muito pulverizado. As maiores empresas do setor foram se convertendo em fundos de recebíveis (FIDCs), e fazem as operações de maior volume.

A tendência é que as ESCs façam empréstimos de tíquetes baixos e funcionem como uma espécie de “microbanco” do município, embora não possam se designar dessa maneira. Em algumas situações, devem competir com as fintechs.

No entanto, o Banco Central vê cada modalidade com seu espaço. João André Calvino Marques Pereira, chefe do Departamento de Regulação do Sistema Financeiro do BC, afirmou em evento na semana passada que a empresa simples de crédito é uma opção de empréstimo em lugares “sem atendimento ou alcance do sistema regulado”. Enquanto isso, segundo ele, a sociedade de crédito direto — modelo criado para abrigar fintechs — tem mais potencial porque está num ambiente regulado, estruturado e seguro.

“Há quem diga que a ESC é a legalização da agiotagem. Mas ela não é viável para agiotas, que cobram 300% por ano”, afirma Vitor Luiz Costa, especialista em direito tributário do Massicano Advogados. Segundo ele, o modelo é um misto de banco e factoring e está sujeito ao Coaf, o que também deve reduzir o interesse de agiotas.

As ESCs não estão sujeitas à limitação de juros imposta pela lei da usura, mas Silva, da Anfac, diz acreditar que o próprio mercado vai se ajustar. Para ele, as exigências previstas na lei são fortes o suficiente para afastar agiotas e aventureiros no novo modelo. “Muitos acreditavam no romantismo do crédito olho no olho, mas houve o cuidado de não se transformar a empresa simples de crédito numa aventura”, diz.

Fonte: Valor Investe



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