Folha ignora evidências favoráveis às cotas raciais

Na quinta-feira (7), pela oitava vez, esta Folha publicou um editorial (“Cotas sociais, não raciais”) explicitando sua posição ideológica sobre as cotas raciais, negando os evidentes resultados positivos da política em curso para as universidades públicas e toda a sociedade. Em 2021, fiz a análise de discurso de três posicionamentos deste jornal: os editoriais “Cotas e nada mais” (2003), “Cotas raciais, um erro” (2012) e a campanha institucional “O que a Folha pensa” (2014). Ficou evidente a falta de interesse do veículo em considerar a subjetividade de negras e negros e o contexto histórico-social em que as cotas raciais foram propostas.

Comecemos com dados objetivos do IBGE: em 2003, estudantes brancos ocupavam 72,9% das vagas no ensino superior. Pretos e pardos, 0,4%, igualmente. Os editoriais da Folha, nem naquela época nem agora, expressaram preocupação com a disparidade da desigualdade racial no acesso à universidade.

De acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), o número de estudantes pretos e pardos nas universidades federais chegou a 41% em 2010 e aumentou para 52% em 2020. Isso significa que as cotas raciais têm sido efetivas no enfrentamento às desigualdades raciais no acesso à educação superior.

Em 2003, um dos principais argumentos de quem combatia as ações afirmativas era que estudantes negros não conseguiriam acompanhar os cursos. Isso não aconteceu. Estudantes cotistas de universidades federais têm desempenho melhor ou similar ao dos demais estudantes, registrou artigo publicado pelo Ipea em 2023, analisando dados do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) 2017. E, ao contrário do que editoriais daquele período previam, a qualidade do ensino nas universidades públicas não diminuiu com a presença de alunos cotistas. Ainda de acordo com o Enade, 80% das universidades brasileiras com maior desempenho são públicas.

No Brasil, a negação do racismo e do diálogo sobre seus impactos possibilitou o crescimento das desigualdades educacionais, gerando exclusão por raça e gênero nos espaços acadêmicos, contribuindo com a estigmatização do lugar de negras e negros na sociedade.

É fato que a mídia tradicional tem uma grande influência em torno do debate e na demonstração da desaprovação ao tema. O jornal desempenhou um papel fundamental para entender o incômodo da branquitude ao se sentir ameaçada em perder os seus quase 100% de direito nas universidades até a criação das cotas raciais nesses espaços.

As políticas de cotas para ingresso na universidade tiraram pessoas brancas beneficiárias da desigualdade racial da zona de conforto e, desde que começaram a ser debatidas, o racismo se manifesta de forma contundente.

As recentes e notáveis iniciativas da Folha em promover equidade racial em sua equipe, pautas, colunistas e no Conselho Editorial pareciam sinalizar para uma mudança de posicionamento. Mas, hoje, o jornal que se diz plural, mais uma vez, negou evidências e a história.

TENDÊNCIAS / DEBATES

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

Argentina registra diminuição da demanda por dólares: uma boa notícia?

Até o ano passado, Laura conseguia poupar e, como todo argentino, economizava em dólares para enfrentar a alta inflação. Mas desde que o presidente ultraliberal Javier Milei assumiu, suas economias minguaram. Em uma economia em recessão, o peso se valoriza, embora ninguém comemore.

“Sempre poupei em dólares, porque, na Argentina, é o único seguro. Antes comprava até 200 por mês. Desde dezembro, estou vendendo a 300 e não consigo me sustentar”, disse à AFP Laura Gil, bancária de 49 anos e mãe de duas crianças em idade escolar.

O apetite pelo dólar na Argentina como refúgio contra a inflação diminuiu no governo de Milei, mas o que de longe parece animador, de perto revela recessão, queda das importações e liquidações de receitas.

As restrições à compra de divisas impostas em 2018 para desincentivar a demanda por dólares fizeram surgir várias taxas de câmbio, do ilegal ‘blue’ até o que é operado na bolsa.

Nos últimos meses, todos eles despencaram para reduzir a diferença em relação à taxa de câmbio oficial para menos de 20%, uma diferença que havia chegado a 100% em outubro do ano passado.

Após assumir a Presidência em 10 de dezembro, Milei desvalorizou o peso em mais de 50% e, desde então, as depreciações são mensais a um ritmo de 2%.

“A desvalorização tornou essa taxa de câmbio muito conveniente para todos os exportadores, por isso estão liquidando suas divisas”, ampliando a oferta de dólares no mercado, explicou à AFP o economista independente Pablo Tigani.

Mas os preços sentiram o golpe da desvalorização, a inflação disparou ainda mais e aniquilou o poder de compra – e de poupança – dos argentinos.

“Os que tinham dólares guardados estão queimando (gastando) para pagar as contas. Ninguém tem um peso”, resume um ‘arbolito’ (pessoa que vende dólar nas ruas) na já não tão movimentada ‘City’ portenha.

Com uma inflação de 254% interanual e aumentos de aluguéis, transporte, energia, saúde e educação, a castigada classe média tem que vender os dólares que guarda debaixo do colchão.

Tigani disse que “se iniciou nos últimos meses uma inflação em dólares: a gente ganha em pesos e os preços aumentam em dólares”.

Mas as restrições da classe média, histórica compradora de dólares, são apenas parte da explicação da queda na demanda pela moeda.

As importações também caíram 13,4% (internaual) em janeiro, sobretudo em bens de capital que alimentam a indústria, o que significou menor uma demanda por dólares para pagar itens vindos do exterior.

Também influi para uma maior oferta de divisas um fator sazonal que é o início da liquidação de exportações agrárias, com seu auge em abril e maio.

Nesse contexto, o Banco Central conseguiu recompor a diminuta reserva monetária internacional do país e elevá-la ao seu nível mais alto nos últimos seis meses.

“A Argentina está em recessão há 14 meses, mas os últimos quatro foram os mais intensos. O aumento de preços foi muito forte e o consumo desabou”, explicou à AFP o economista independente Federico Glustein.

A inflação foi de 20,6% em janeiro e analistas privados a estimam em 18% em fevereiro, um dado que será divulgado na semana que vem.

“A inflação está desacelerando, mas ainda segue muito alta”, acrescentou Glustein, ao alertar que “falta fazer ajustes econômicos, com mais aumentos de tarifas, o que poderia fazê-la subir de novo”.

A recessão afetou o consumo, mas também a indústria e por isso reduziu a demanda energética. Isso repercute na disponibilidade de divisas em um país que importa parte da energia que suas fábricas consomem.

Somente no setor de PMEs (pequenas e médias empresas), a queda da atividade industrial em janeiro foi de 30% interanual, segundo a Confederação Argentina da Média Empresa.

“A Argentina está importando menos energia, portanto gastam menos reservas e o Banco Central se permite comprar o excedente”, apontou Glustein, que interpreta a queda na demanda por dólares como “um sintoma da crise”.

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Ataque Houthi contra navio no Mar Vermelho deixa tripulantes mortos pela primeira vez

Um ataque com mísseis balísticos feito por rebeldes houthis contra um navio comercial no Golfo de Áden deixou ao menos dois membros da tripulação mortos e seis feridos, informaram autoridades americanas nesta quarta-feira. É a primeira vez que uma ação do grupo iemenita, apoiado pelo Irã, deixa vítimas fatais desde o início dos ataques contra embarcações no Mar Vermelho e no Golfo de Áden, em outubro do ano passado, em retaliação à ofensiva israelense na Faixa de Gaza.

O ataque ocorreu por volta das 11h30 do horário local (5h30 no Brasil) contra um navio cargueiro M/V True Confidence, com bandeira de Barbados e propriedade da Libéria. Os houthis afirmaram, em nota, que o ataque foi “preciso” e provocou um incêndio na embarcação, que foi abandonada em seguida.

“A operação de direcionamento ocorreu depois que a tripulação do navio rejeitou as mensagens de alerta das forças navais do Iêmen”, afirma a nota, na qual o grupo reiterou o apoio ao povo palestino e disse que não interromperão os ataques no Mar Vermelho até que a “agressão israelense pare e o cerco ao povo palestino na Faixa de Gaza seja suspenso”.

O porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, Matthew Miller, afirmou nesta quarta-feira que as morte eram “tristemente inevitáveis”.

— Os houthis continuaram a lançar esses ataques imprudentes sem nenhuma preocupação com o bem-estar de civis inocentes que estão transitando pelo Mar Vermelho e agora, infelizmente e tragicamente, mataram civis inocentes — disse Miller, afirmando os EUA farão os houthis prestarem contas sobre os seus ataques, “que não apenas interromperam o comércio internacional, não apenas interromperam a liberdade de navegação e as águas internacionais, não apenas colocaram em risco os marítimos, mas agora mataram tragicamente vários deles”.

Devido aos ataques dos houthis, os Estados Unidos implementaram uma força multinacional de proteção marítima e realizaram, às vezes com apoio do Reino Unido, bombardeios contra posições dos rebeldes no Iêmen. Segundo a coalização, os houthis já lançaram mais de 45 ataques com mísseis e drones contra embarcações comerciais e navais que operam no Mar Vermelho, sendo que a maioria foi interceptada ou caiu no mar. Até o momento, nenhum navio militar foi atingido.

O Golfo de Áden dá acesso ao Mar Vermelho, por onde várias embarcações cortam caminho para chegar até a Europa através do Canal de Suez, que faz ligação com o Mar Mediterrâneo. Cerca de 15% do comércio mundial utiliza a rota, mas muitas embarcações estão preferindo dar a volta pelo continente africano para fugir dos ataques dos houthis. Segundo a ONU, na primeira quinzena de fevereiro, o Canal de Suez sofreu uma queda de 42% nos trânsitos mensais em relação ao seu pico em 2023.

Como seria um novo mandato de Trump?

Depois de ter sido derrotado em sua tentativa de reeleição em 2020, o ex-presidente americano Donald Trump vem dominando a disputa pela indicação do Partido Republicano para concorrer à Presidência novamente.

Trump teve um desempenho avassalador nas eleições primárias realizadas na terça-feira (05/03), a chamada Super Terça, consolidando sua liderança na corrida pela nomeação do partido.

Os candidatos de cada partido só serão oficializados no meio do ano. Mas, caso as projeções atuais se confirmem, a eleição de 5 de novembro será uma repetição do pleito de 2020, colocando o republicano Trump contra o democrata Joe Biden.

Com mais de oito meses até a votação, pesquisas de intenção de voto neste momento devem ser interpretadas com cautela, mas várias delas indicam vantagem de Trump sobre o atual presidente, enquanto outras mostram empate.

Caso Trump volte à Casa Branca, há a expectativa de que retome e amplie diversas das medidas adotadas em seu governo, incluindo um endurecimento de restrições à imigração e uma agenda mais isolacionista na diplomacia e protecionista no comércio exterior.

Declarações de Trump na campanha e entrevistas de seus assessores mais próximos à imprensa americana sugerem ainda que o republicano planeja ampliar os poderes presidenciais e transformar a maneira como algumas agências e departamentos do governo operam.

Críticos lembram que, quando Trump era presidente, alguns membros de seu gabinete e da bancada republicana no Congresso ofereceram resistência às suas propostas mais controversas. Outras medidas foram bloqueadas na Justiça.

Agora, porém, muitos desses servidores e políticos já deixaram o poder, e a Suprema Corte tem hoje uma composição mais conservadora, graças a três juízes nomeados pelo próprio Trump.

Isso reduziria os obstáculos para Trump implementar medidas consideradas drásticas por alguns.

Política externa

Espera-se que a política externa em um eventual novo mandato de Trump siga uma agenda mais isolacionista.

O republicano mantém o slogan America First (“A América Primeiro”, em tradução livre), que animou sua campanha em 2016, e fala em “rejeitar o globalismo e abraçar o patriotismo”.

Durante seu governo, ele retirou os Estados Unidos do Acordo do Clima de Paris, do Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica (TPP, na sigla em inglês) e do acordo nuclear com o Irã. Também tentou retirar tropas americanas da Síria e um terço dos 36 mil soldados estacionados na Alemanha.

Caso volte à Casa Branca, Trump deverá reavaliar alguns dos compromissos militares do país. Muitos analistas descrevem seu estilo diplomático como “transacional”, no qual ganham mais peso questões comerciais ou sua relação pessoal com determinados líderes.

Certos aliados, como Israel, devem continuar contando com o apoio americano. Em seu governo, Trump reconheceu oficialmente Jerusalém como capital de Israel e transferiu a embaixada americana, até então localizada em Tel Aviv, para a cidade.

Outros países, porém, lidam com incertezas. “Para os aliados mais próximos dos Estados Unidos, incluindo Europa, Japão, Coreia do Sul e Austrália, a perspectiva de um segundo mandato de Trump é fonte de grande tensão”, resumiu em editorial no mês passado o jornal britânico Financial Times.

O mesmo texto ressalta, porém, que outros países, entre eles “muitas das chamadas potências médias, que buscam um caminho entre a China e os EUA”, têm visão mais positiva.

Otan e Ucrânia

Trump diz, sem dar detalhes, que é preciso “concluir o processo iniciado no meu governo, de fundamentalmente reavaliar o propósito e a missão da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte)”.

Quando era presidente, ele ameaçou retirar os Estados Unidos da Otan, criticando aliados europeus por não investirem o suficiente em suas próprias defesas e dependerem excessivamente da ajuda americana. Agora, há o temor de que decida levar a ideia adiante.

“Seria um choque”, diz à BBC News Brasil o cientista político Jonathan Hanson, da Universidade de Michigan. “Abalaria todo o ambiente de segurança da Europa.”

A Otan é considerada a mais importante aliança militar dos Estados Unidos. Criada em 1949, no contexto da Guerra Fria, é formada por 31 países que concordam em ajudar uns aos outros em resposta a um ataque contra qualquer Estado-membro.

Trump pode decidir também cortar ou reduzir a assistência à Ucrânia, que não é membro da Otan, mas depende da ajuda americana para lutar contra a invasão russa. Ele diz que pretende “obter imediatamente a cessação total das hostilidades”.

Os Estados Unidos já enviaram mais de US$ 75 bilhões (cerca de R$ 371 bilhões) em ajuda militar, financeira e humanitária desde fevereiro de 2022, quando forças russas invadiram a Ucrânia. Vários republicanos no Congresso têm se oposto ao envio de mais dinheiro.

Em entrevistas, Trump disse que vai “resolver a guerra em 24 horas”, mas não detalhou o plano nem esclareceu qual seria a solução para as partes do território ucraniano ocupadas pela Rússia após a invasão.

Imigração

Trump pretende expandir e endurecer algumas das medidas adotadas em seu governo para combater a imigração ilegal. Em vários comícios, ele prometeu “realizar a maior operação de deportação da história americana”.

As deportações poderiam atingir pessoas que vivem no país há décadas e até mesmo imigrantes legais que “abrigam simpatias jihadistas”.

Trump também planeja adotar uma nova versão da sua proibição da entrada de pessoas de determinados países de maioria muçulmana.

O republicano afirma que vai “acabar com a fraude nos pedidos de asilo”. Esses pedidos na fronteira seriam recusados, sob a alegação de que os imigrantes podem trazer doenças como sarna ou tuberculose.

O status de proteção temporária concedido a imigrantes de certos países poderia ser revogado, assim como vistos de estudantes que participaram de protestos contra Israel ou manifestaram opiniões “antiamericanas”.

Trump planeja usar uma lei do século 18 para deportar sumariamente suspeitos de pertencerem a cartéis de narcotraficantes ou gangues criminosas e também quer ampliar o uso de “remoção acelerada”, que permite deportações mais rápidas, sem o processo normal de audiências e recursos.

Outra proposta é enviar soldados para atuar na fronteira, com o auxílio da Guarda Nacional e de polícias locais enviadas por alguns Estados e municípios.

O uso de forças militares em solo doméstico é proibido, mas Trump poderia invocar a Lei de Insurreição, que abre uma exceção.

Dinheiro do orçamento militar poderia ser redirecionado para a construção de campos onde os imigrantes aguardariam deportação. Trump pretende ainda acabar com o direito automático à cidadania para nascidos em território americano cujos pais são imigrantes ilegais.

Stephen Miller, que foi responsável por algumas das políticas de imigração no governo Trump e deve ter papel importante em um eventual novo mandato, disse ao jornal The New York Times que o republicano usará “o vasto arsenal de poderes federais para implementar a mais espetacular repressão à migração”.

Assim como ocorreu durante seu governo, espera-se que muitas das medidas sejam contestadas na Justiça. Apesar de ter prometido “deportações em massa” na campanha de 2016, os números de pessoas expulsas do país em seu mandato foram semelhantes aos de governos anteriores.

Agora, no entanto, o cenário é considerado mais favorável. Somente em dezembro, quase 250 mil imigrantes entraram nos Estados Unidos de forma ilegan vindos do México, e cerca de três quartos dos americanos consideram o problema “grave”.

Esse fluxo sobrecarrega cidades na região, mas o problema é sentido mesmo em metrópoles longe da fronteira e governadas por democratas, como Nova York ou Chicago. Com isso, não apenas republicanos, mas também alguns democratas vem defendendo uma resposta mais dura à crise.

Comércio exterior

“America First” também é o lema da política de comércio exterior proposta por Trump, que inclui a ampliação da guerra comercial com a China iniciada em seu governo e “um sistema de tarifas básicas universais sobre a maioria dos produtos estrangeiros.”

As tarifas aumentariam gradualmente, “dependendo de quanto os países desvalorizam suas moedas”.

Trump também pretende pedir que o Congresso aprove uma lei para impor automaticamente tarifas recíprocas a qualquer país que taxar produtos americanos.

Trump diz que as medidas têm o objetivo de fortalecer a indústria nacional, gerar mais empregos, especialmente para trabalhadores sem diploma universitário, aumentar a renda das famílias e aumentar as receitas do governo.

Muitos trabalhadores nos Estados Unidos estão frustrados com o livre comércio global, diante do fechamento de fábricas e da estagnação de salários. Além disso, há preocupações com a dependência americana da China em determinados bens essenciais.

Mas a imposição de tarifas poderia desencadear uma guerra comercial global e prejudicar a economia americana, aumentando os preços para os consumidores e fabricantes que usam insumos estrangeiros, com possíveis reflexos negativos em empregos e salários.

“Não creio que seja um desenvolvimento positivo para a economia mundial se dividir em blocos mais protecionistas”, diz Hanson, lembrando que Biden continuou muitas das políticas do governo Trump nessa área.

“Avançamos nessa direção e penso que, até certo ponto, ambos os partidos empurraram os Estados Unidos para uma direção mais protecionista”, afirma Hanson. “E creio que vamos ver respostas (de outros países).”

China

Biden manteve as tarifas impostas por Trump à China e adotou novas restrições, entre elas a proibição de exportação de certas tecnologias com aplicações militares. As novas propostas de Trump, porém, iriam além.

O republicano afirma que, por “questão de segurança econômica e nacional”, pretende “eliminar completamente a dependência americana” da China, terceiro maior parceiro comercial dos Estados Unidos, atrás do Canadá e do México.

Em 2022, as trocas comerciais de bens e serviços entre as duas maiores economias do mundo totalizaram US$ 758,4 bilhões (cerca de R$ 3,76 trilhões), com déficit de US$ 367,4 bilhões (cerca de R$ 1,82 trilhão de reais) para os Estados Unidos.

Trump propõe revogar o status comercial de “nação mais favorecida” (MFN, na sigla em inglês) da China. Esse status, usado no comércio internacional, garante que o país beneficiado não será tratado de forma menos favorável do que outras nações.

Com o status rebaixado, produtos chineses poderiam ser sujeitos a tarifas de até 60%. Segundo o Conselho Empresarial EUA-China, a revogação do status chinês teria impacto na economia americana, resultando na perda de mais de 700 mil empregos e US$ 1,6 trilhão (R$ 7,94 trilhões) nos Estados Unidos em cinco anos.

Trump promete ainda “um plano de quatro anos para eliminar gradualmente todas as importações de bens essenciais da China, desde produtos eletrônicos até aço e farmacêuticos” e planeja impedir contratos federais para “empresas que terceirizem para a China”.

O republicano diz que vai proibir a propriedade chinesa de infra-estrutura crítica nos Estados Unidos e pretende “impedir que empresas americanas invistam na China e que a China compre a América, permitindo apenas investimentos que sirvam aos interesses americanos”.

Funcionamento do governo

Trump promete “conduzir uma revisão completa das burocracias federais para limpar a podridão e a corrupção de Washington” e diz que “o Departamento de Estado, a burocracia de defesa, os serviços de inteligência e todo o resto precisam de ser completamente reformulados”.

O republicano planeja reduzir regulamentações e “trazer agências reguladoras independentes de volta à autoridade presidencial”, exigindo que “apresentem quaisquer regulamentos em consideração para revisão pela Casa Branca”.

Trump anunciou que irá “exigir que todos os funcionários federais passem em um novo teste de serviço público” e há o temor de que possa tentar reduzir proteções aos servidores públicos, para facilitar a demissão de funcionários de carreira e substituí-los por pessoas mais leais.

Após sofrer impeachment duas vezes, quando foi absolvido pelo Senado, e enfrentando 91 acusações em quatro processos criminais, o ex-presidente se apresenta como vítima de perseguição política e sugere que poderia usar o Departamento de Justiça para se vingar de adversários.

O candidato e outros republicanos consideram o Departamento de Justiça politizado. Mas analistas advertem que uma eventual redução da independência do departamento quebraria normas em vigor desde as reformas adotadas após o escândalo de Watergate, na década de 1970.

“Acho preocupante que Trump fale abertamente em usar o Departamento de Justiça para processar inimigos políticos”, diz Hanson. “Isso quebra a norma pela qual os poderes de investigação criminal do Departamento de Justiça deveriam ser protegidos da política.”

Na Super Terça, Trump e Biden definem seu futuro com disputa de delegados; entenda

Milhões de eleitores americanos irão às urnas nesta terça-feira para escolher indiretamente os candidatos à Presidência que poderão representar os dois partidos majoritários dos Estados Unidos nas eleições de novembro. Conhecido como Super Terça, o evento acontece paralelamente em 15 estados — entre eles Califórnia e Texas, que são ricos em delegados — e no território da Samoa Americana. A data é a mais importante da pré-eleição nacional e, este ano, provavelmente marcará uma revanche na Casa Branca entre o presidente Joe Biden e o ex-presidente Donald Trump.

Na Super Terça, uma grande quantidade de delegados é distribuída em um único dia: estão em jogo 865 delegados do Partido Republicano (35% do total nacional) e 1.420 do Partido Democrata (30%). Consequentemente, a data costuma ser decisiva para determinar quais são os pré-candidatos mais fortes de cada partido. As disputas também determinarão os contornos das corridas para a Câmara e o Senado, que moldarão o poder Legislativo no próximo ano.

O resultado final das prévias é apresentado de forma oficial pela Convenção Nacional de cada partido— neste ano, o Partido Republicano realizará a sua entre 15 e 18 de julho, em Milwaukee, e o Partido Democrata entre 19 e 22 de agosto, em Chicago. Porém, não é incomum que os candidatos presidenciais de cada partido sejam conhecidos bem antes de serem nomeados.

Com exceção de Washington D.C, Trump venceu todas as prévias do Partido Republicano desde janeiro. Muitos rivais jogaram a toalha no caminho. Nikki Haley, de 52 anos, foi a única que ficou. Ex-governadora da Carolina do Sul e ex-embaixadora dos EUA na ONU, ela foi a primeira pré-candidata republicana a se apresentar para concorrer à vaga do partido na disputa pela Casa Branca, em fevereiro do ano passado. Haley venceu sua primeira primária no domingo e pode vencer mais algumas nesta terça-feira, mas deve anunciar nesta ou na próxima semana sua saída da disputa, após não conseguir se consolidar como uma opção de renovação dentro do partido, nem convencer o eleitorado geral de que está preparada para ser a primeira mulher a presidir o país.

Já Biden, que não tem concorrentes com real possibilidade de desafiá-lo no flanco democrata, sofre com a percepção da maioria do eleitorado de não ter mais disposição e acuidade mental para seguir na Casa Branca, segundo pesquisas. Na quinta-feira, seu discurso do Estado da União, dizem reservadamente fontes da campanha de reeleição, pode deslanchar o que qualificam de “virada na campanha”. Além de bater na tecla de que a economia está em pleno vapor, com recorde de emprego e inflação controlada, há a possibilidade de o presidente anunciar uma ação executiva endurecendo a política de imigração do país. O tema, após recorde de entrada de estrangeiros não documentados pela fronteira com o México no ano passado, virou tema central do pleito.

Como funcionam as eleições americanas?

Ao contrário do Brasil, onde a maioria dos partidos políticos define seus candidatos por meio de processos restritos a líderes e filiados e os apresentam ao eleitorado já na condição de postulantes à Presidência, os Estados Unidos desenvolveram um sistema de consulta pública que permite aos eleitores opinar desde o primeiro momento na definição de quem disputará o controle da Casa Branca. As prévias — também chamadas de primárias por aqui — são a etapa inicial das eleições americanas e seguem regras tão específicas (e variadas) por Estado quanto a eleição geral, que neste ano será realizada em 5 de novembro.

As prévias são um processo longo — começaram em 15 de janeiro, com o caucus republicano em Iowa, e se estendem até 8 de junho, com o caucus e a primária democrata em Guam e Ilhas Virgens, respectivamente — e quase idêntico a qualquer disputa por voto. Políticos fazem campanha, arrecadam verba e debatem propostas, enquanto tentam convencer os eleitores a se apresentar em uma data predeterminada para votar. A diferença é que, para os candidatos (pré-candidatos, no caso), a disputa é interna, seja no Partido Democrata ou no Partido Republicano. O vencedor no processo de cada sigla ganha o direito de ter seu nome na urna em novembro e só então disputar de fato a Presidência.

Qual a diferença entre primárias e caucus?

O calendário eleitoral americano é definido pelos estados, com participação dos partidos, e divulgado aos eleitores. Os requisitos para a votação e as fórmulas de disputa e apuração, contudo, variam de estado para estado. Em alguns deles, eleitores registrados podem escolher em qual prévia votar espontaneamente enquanto, em outros, devem declarar antecipadamente vínculo com algum dos partidos. A principal diferença, porém, está no formato, que pode ser de primária ou caucus.

As primárias são as que mais se assemelham a uma eleição normal. Elas são organizadas e realizadas pelos governos estaduais. Os eleitores se dirigem a locais de votação no dia indicado e depositam seu voto na urna de forma anônima. Ao fim, os votos são apurados e os vencedores apresentados ao público.

Os caucus são um formato que remontam uma tradição que se arrastou do período colonial à democracia dos EUA. Nele, o eleitor precisa demonstrar publicamente seu apoio a um candidato, comparecendo presencialmente a um ato político organizado pelo partido em seu distrito e expressar seu voto diante dos demais presentes. Ou seja, no dia marcado, o eleitor de determinado candidato precisa ir até um local definido previamente, como um ginásio ou um templo religioso, e expressar seu apoio no momento da contagem.

Cada estado tem uma regra específica, mas em alguns caucus são realizadas votações sequenciais, permitindo que apoiadores de determinado candidato tentem atrair novos eleitores ou mudem de opinião entre uma contagem e outra, até que um candidato conquiste a maioria necessária para vencer o pleito.

Como funciona a contagem dos votos?

Os formatos de votação diferentes no fim levam a um mesmo caminho: a contagem dos votos. Os caucus costumam ser mais rápidos em apontar um vencedor pelo fato de as contagens serem realizadas em tempo real, enquanto as primárias exigem a abertura de urnas e uma apuração cédula por cédula. Por outro lado, outra especificidade das eleições americanas complica mais um pouco o processo: a presença dos delegados.

Uma diferença marcante das eleições americanas para outras democracias é que, nos EUA, nem sempre o número absoluto de votos define o vencedor. Ao contrário do Brasil, onde o voto de um eleitor em Fortaleza tem o mesmo peso que o voto de um eleitor de São Paulo para o resultado da eleição, o sistema americano privilegia a opinião dos Estados com maior população, e isso se manifesta — nas prévias e nas eleições gerais — na distribuição dos delegados.

Funciona assim: antes da eleição, são definidos os distritos eleitorais, que costumam ser traçados considerando limites de cidades e condados, levando em conta suas populações. Para cada distrito, é atribuído um número de delegados. Quem vence no distrito, conquista os seus delegados. No caso das prévias, esses delegados do partido representarão o pré-candidato mais votado na Convenção Nacional de sua sigla, da qual sairá a nomeação do candidato presidencial.

O Partido Democrata estabeleceu 3.923 delegados em disputa para seus pré-candidatos. O Partido Republicano, 2.429. O pré-candidato de cada sigla que obtiver mais da metade dos delegados estabelecidos pelo partido será indicados para a disputa geral, em que os candidatos dos dois partidos disputam o mesmo número de delegados (538).

Foi isso que aconteceu com os ex-candidatos democratas à Presidência Al Gore e Hillary Clinton, em 2000 e 2016, durante as eleições gerais. Mesmo com a maioria dos votos diretos dos eleitores, eles perderam na soma de delegados para George W. Bush e Donald Trump, respectivamente, sendo derrotados no Colégio Eleitoral.

No caso das prévias, os partidos criaram mecanismos para tentar fazer a opinião dos eleitores ter mais peso na decisão dos candidatos. Em vez de um sistema em que “o vencedor leva tudo”, alguns Estados estabeleceram um sistema proporcional, em que os delegados do Estado são repartidos de acordo com o percentual de votos por candidato. Outros Estados mantém a regra da eleição geral para as prévias: o vencedor conquista todos os delegados enviados à Convenção Nacional.

‘Não quero tomar chuva, quero ser meu patrão’: o que leva pedreiros a desistir da profissão e provoca alerta no setor

Durante 45 anos, o pai de Rodrigo Silva exerceu a profissão de armador na construção civil. Com mãos ágeis, José Pereira da Silva moldava as estruturas de concreto e aço de grandes obras da cidade de São Paulo.

Ser armador era valorizado na maior e mais rica cidade da América Latina, e José ensinou a Rodrigo tudo sobre a atividade, que ele seguiu por uma década.

Mas, há dois anos, Rodrigo, hoje com 38 anos, trocou o canteiro de obras pelas ruas paulistanas, fazendo entregas com sua moto. Foi o ponto final de um ciclo.

“Não quero mais acordar cedo, passar frio e tomar chuva para ser pressionado por encarregado e supervisor”, diz Rodrigo à BBC News Brasil.

“Hoje, ganho mais do que antes, folgo quando quero e sou meu patrão.”

O ex-armador e agora entregador diz que outro fator que o fez trocar de profissão foi a instabilidade.

“Você começa a receber bem, mas logo depois dizem que estão tendo prejuízo e te demitem”, diz Rodrigo.

A mudança, explica ele, foi pensando no seu próprio bem-estar e da sua família.

“Meu pai falava para eu não me apegar a nenhuma obra e nem à profissão. Dizia que, se aparecesse algo melhor, era para eu ir”, afirma.

Ainda assim, Rodrigo fez questão de viajar à Nova Soure, na Bahia, onde seu pai mora atualmente, para perguntar se ele o autorizava a mudar de área.

“Ele concordou na hora.”

‘Apagão’ de mão de obra

A história da família de Rodrigo ajuda a entender por que lideranças da indústria e profissionais do setor ouvidos pela BBC News Brasil apontam para uma falta de mão obra na construção civil em São Paulo.

As fontes concordam, no entanto, que não há números exatos sobre esse eventual déficit no Estado, que representa cerca de um terço do mercado nacional, segundo o sindicato que representa os trabalhadores do setor.

De acordo com dados do Sistema do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), o Brasil encerrou o ano de 2023 com um saldo anual positivo de 158,9 mil contratações na construção civil.

Mas, no longo prazo, o número de trabalhadores no setor vem caindo.

O país tem atualmente 2,6 milhões de pessoas trabalhando diretamente na área. Em 2010, eram 3,2 milhões, quase 19% a menos.

Outro termômetro em números vem da pesquisa nacional Sondagem da Construção, feita mensalmente pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

O levantamento de fevereiro apontou que 25,7% dos empresários do setor estavam preocupados com a escassez de mão de obra no país.

Para David de Fratel, coordenador do SindusCons-SP (Sindicato da Indústria da Construção Civil), que representa as empresas do setor no Estado de São Paulo, há falta de profissionais especializados, ainda que ele não conheça levantamentos confiáveis para confirmar a percepção.

“O que existe é um déficit causado pela falta de interesse de novos entrantes”, diz Fratel.

“O jovem de hoje não quer mais a construção civil. Ele quer ser motorista de aplicativo e trabalhar em um carro com ar condicionado ou algo ligado à tecnologia”, complementa.

A visão de Fratel é reforçada por um estudo do SindusCon, feito com quase 800 mil profissionais da construção civil em 22 Estados.

O levantamento apontou que houve entre 2016 e 2023 um aumento da média de idade das pessoas que trabalham na construção de 38 para 41 anos.

“O que está acontecendo é muito grave e pode causar um apagão nas obras”, diz Fratel.

“Nossa pirâmide etária lembra a de países desenvolvidos, com entrada de poucos jovens e bastante gente mais velha. Falta atratividade e melhores condições de trabalho para atrair mão de obra.”

Renato de Sousa Correia, presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), concorda.

Ele afirma que os mais jovens estão se desinteressando pelo setor da construção por causa da exigência física da atividade.

“A pessoa precisa carregar saco pesado nas costas, tomar sol. Esse é o ponto”, diz Correa.

O presidente da CBIC reforça que não há uma pesquisa que indique a falta de trabalhadores na construção, mas afirma que, “em todas as áreas, está faltando mão de obra e vai piorar”.

No momento, o Brasil assiste ao aquecimento do mercado de trabalho em geral.

De acordo com a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o trimestre encerrado em janeiro de 2024 fechou com uma taxa de desemprego de 7,6% no Brasil.

Essa é a menor taxa para um trimestre desse período desde 2015, quando o país registrou 6,9%.

“É muito difícil ter um índice de desemprego da construção, porque a pessoa está temporariamente na profissão, mas quando sai do emprego não faz mais parte do setor. Ela pode ser o que ela quiser, padeiro, motorista etc. Portanto, acho muito difícil haver um dado segmentado de desemprego”, diz Correa.

Ele ressalta outra característica do setor, a informalidade: “Hoje, temos 7,5 milhões de pessoas no setor, mas apenas 2,6 milhões são CLT”.

Ressaca pós-pandemia, eleição, novo PAC

Entre as lideranças dos trabalhadores, o diagnóstico não muda muito.

O presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção de São Paulo (Sintracon-SP), Antônio Ramalho, também usa o termo “apagão” para falar da falta de profissionais.

Ramalho diz que faltam tanto incentivos para a entrada de novos trabalhadores como treinamento para desempregados que queiram tentar a sorte na construção.

Ele aponta ainda outro fator que torna o fenômeno ainda mais evidente: o aumento da demanda a partir do fim de 2023.

“Desde novembro, houve uma retomada de obras públicas pelo governo federal e, quando você pega as prefeituras, vê que São Paulo virou um canteiro de obras”, afirma Ramalho.

Ana Maria Castelo, professora do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV Ibre), afirma que a construção civil está demonstrando resiliência e cita como outro fator de aumento da demanda o fato de 2024 ser um ano eleitoral.

“Esse mercado também está aquecido por conta de um novo ciclo de leilões de infraestrutura, obras do metrô e o anúncio do Novo PAC [Programa de Aceleração do Crescimento]”, diz Castelo.

Em agosto passado, o governo Lula relançou o PAC, que marcou seu segundo mandato e a gestão Dilma Rousseff (PT), para alavancar os investimentos em infraestrutura e gerar empregos.

A promessa é investir R$ 371 bilhões do Orçamento da União em quatro anos.

O programa, somado às obras típicas de períodos eleitorais, como recapeamento, promete movimentar um setor que viveu altos e baixos nos últimos anos.

A construção civil teve um forte crescimento no início desta década, mas enfrentou uma queda acentuada de produção em 2023 até o novo impulso no fim do ano.

O Produto Interno Bruto (PIB) do setor disparou 12,6% em 2021, reflexo das pequenas reformas domésticas durante a pandemia, e manteve-se alto em 2022, ainda que em um patamar mais baixo, com avanço de 6,8%.

Mas, em 2023, houve uma retração de 0,5%, segundo o IBGE — enquanto isso, o PIB brasileiro cresceu 2,9%.

Ainda assim, no quarto e último trimestre do ano passado, o setor cresceu 4,2%, e a expectativa é que volte a crescer em 2024.

Baixos salários e esforço físico

Adriano José Cordeiro, de 40 anos, que trabalha como pedreiro e azulejista confirma que o mercado está aquecido e não falta serviço, mas reclama dos baixos salários.

Mesmo assim, ele não pensa em deixar a profissão, porque diz amar o que faz.

“Eles pagam diárias de R$ 150 há alguns anos. Tem muita gente pulando fora por causa disso”, diz.

“Na pandemia, só trabalhei com aplicativo (de entregas). Mas, agora, eu consegui um emprego registrado na construção e só faço entrega nas horas vagas.”

Segundo o IBGE, cerca de 1,5 milhão de brasileiros trabalhavam com aplicativos e plataformas digitais em 2022, como serviços de entrega e transporte de passageiros.

Esse número era o equivalente a 1,7% da mão de obra do setor privado.

O engenheiro civil Denis Sousa coordena as obras de três condomínios que estão sendo erguidos na Zona Leste de São Paulo e também percebe transformação nos canteiros de obras em que trabalha.

“As novas gerações têm mais acesso a outras oportunidades, e esse ensinamento de pai para filho na construção está se perdendo”, diz.

Sousa diz que, na sua percepção, os trabalhadores que mais abandonaram os canteiros foram aqueles de áreas que fazem mais esforço e correm mais risco, como carpinteiro e armador, a antiga função de Rodrigo Silva, que prefere ser entregador em tempo integral.

“O armador carrega muito peso e trabalha sob sol ou chuva. Já o eletricista raramente trabalha em locais sem cobertura e não pega tanto peso. É um trabalho que não sacrifica tanto”, explica.

O engenheiro diz que, por enquanto, o impacto principal tem sido sentido principalmente nas obras em fase inicial, quando essas funções são mais requisitadas.

Mas aponta que isso é um alerta de que também pode faltar mão de obra nos canteiros mais para a frente.

“Esse é um sinal de que em um ou dois anos isso também vai se refletir no mercado de pintores e gesseiros, por exemplo”, diz Sousa.

‘Leilão’ de pedreiros

Com o mercado aquecido e a pressão para terminar as obras antes do prazo, empresas têm feito um leilão informal por pedreiros em São Paulo, segundo Antonio Ramalho, do Sintracon-SP.

“Isso tem acontecido constantemente. A concorrência precisa do trabalhador e vai até a obra do vizinho oferecer 30% a mais para ele trabalhar na dele”, diz.

Trabalhadores de canteiros de obras em São Paulo visitados pela reportagem confirmam que as ofertas de empregos fazem parte da rotina de trabalho.

Eles contam que são frequentemente sondados por outras construtoras no canteiro de obras. Alguns chamam de “oportunidade”, outros de “leilão”.

“Quase toda semana tem encarregado esperando a gente sair na calçada para perguntar se a gente aceita ir para outra obra por um salário melhor”, diz um dos profissionais.

“Esse leilão é um sinal de que eles estão desesperados. De vez em quando, eu aceito para me valorizar.”

Outro trabalhador, que dá expediente na mesma construção, disse que nega os convites que recebe.

“Eu fico com pé atrás. Vai que eu largo meu trabalho fixo para ir para o incerto, e a obra para. Minha família fica como?”, afirma.

“Deixo isso para os mais jovens que podem se arriscar.”

Ramalho afirma que as empresas têm buscado saídas para a falta de pedreiros.

“Uma das mais usadas é muito perigosa. Estão fazendo os funcionários trabalharem 12 horas por dia, aos feriados e fins de semana para compensar essa falta de trabalhadores e não atrasar as obras”, diz Ramalho.

“Os funcionários ganham mais dinheiro, mas, por outro lado, sofrem mais lesões e problemas de saúde. As obras também ficam mais caras por conta do pagamento de tantas horas extras.”

O sindicalista defende uma qualificação em massa de profissionais para atuar na construção civil e afirma estar debatendo com empresários e governos para criar o programa “Escola Canteiro”.

Segundo ele, pela iniciativa, trabalhadores desempregados ou que recebem seguro-desemprego aprenderiam a profissão fazendo obras em bairros periféricos.

Já a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), que reúne 75 companhias do setor, informou em nota à reportagem que a “falta de mão de obra especializada é um ponto de atenção”.

Mas diz que treina constantemente seus colaboradores para que as obras avancem “sem interrupções significativas”.

Especialização e futuro da construção

Com o atual panorama, os especialistas do setor ouvidos pela BBC News Brasil afirmaram que as construtoras passaram a buscar saídas em mudanças na produção.

“Vemos uma busca pela industrialização da construção civil, com materiais pré-moldados e até módulos inteiros”, diz Ana Maria Castelo, professora da FGV.

A transformação diminuiria a necessidade de profissionais nas obras e agilizaria o processo de construção, apontam os especialistas.

O azulejista Adriano afirma que pretende se especializar para crescer na profissão e aproveitar o bom momento do mercado.

“Talvez eu faça um curso de mestre de obra para ser promovido e me tornar encarregado”, diz Adriano.

O azulejista avalia que, mesmo com os baixos salários oferecidos pelo mercado, não haverá escassez de mão de obra, pois muitos profissionais aceitam ganhar o que as empresas oferecem.

“Eu participo de muitos grupos de WhatsApp (com ofertas de emprego). E, sempre que aparece uma vaga, por menor que seja o salário, alguém sempre aceita”, diz.

Já Rodrigo Silva, que está há dois anos longe da construção civil, conta que já recebeu muitas ofertas para trabalhar novamente como armador e negou todas.

“Já me chamaram muitas vezes para voltar. Mas eu não tenho mais paciência para trabalhar em local fechado e com muita gente querendo mandar”, diz.

Questionado se ensinaria a profissão de armador ao filho, Rodrigo Silva diz que, se for necessário, ensinará “com muita honra”.

“Meu filho tem 2 anos e não sei como estará a construção civil quando ele crescer, mas vou tentar colocar ele para trabalhar com outra coisa. Quero ele na frente do computador.”

‘Quando super-ricos não pagam impostos, é o resto da população que paga’, diz economista Gabriel Zucman

O trabalho do economista francês Gabriel Zucman, professor da Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos, têm sido um dos principais pilares de sustentação dos argumentos em defesa da tributação de grandes riquezas nos últimos anos.

Uma de suas publicações mais recentes, o relatório global sobre evasão de impostos de 2024, mostrou que um imposto global de 2% sobre a fortuna de bilionários poderia arrecadar US$ 250 bilhões (R$ 1,24 bilhão) – tributando menos de 3 mil pessoas em todo o mundo.

Discípulo do economista francês Thomas Piketty, Zucman defende que sistemas tributários que facilitam que os super-ricos não paguem impostos levam à instabilidade política e à corrosão das instituições democráticas no longo prazo.

“Quando os super ricos conseguem não pagar pagar impostos, é o resto da população que paga, e isso é insustentável”, diz o economista, que também é diretor do Observário de Impostos da União Europeia, em entrevista à BBC News Brasil.

“Grande concentração de riqueza é também grande concentração de poder, o que corrói a democracia.”

Vencedor de prêmios como a prestigiada medalha John Bates Clark para jovens economistas, Zucman tem sido convocado em diversos países para dar conselhos sobre políticas econômicas – notoriamente, foi considerado o “guru tributário” dos candidatos presidenciais americanos Bernie Sanders e Elizabeth Warren, que concorreram às primárias em 2020.

Na última semana, o economista esteve em São Paulo a convite do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para dar uma palestra em um dos encontros do G20, grupo que reúne as maiores economias do mundo.

Ele discursou para ministros da Economia dos países do grupo com o objetivo de convencer líderes mundiais das vantagens de um imposto global mínimo a ser pago pelos super-ricos.

Em entrevista à BBC News Brasil pouco antes do encontro, Zucman defendeu não apenas as vantagens de uma medida do tipo, mas também a viabilidade de tal acordo.

Ele diz que já existem experiências econômicas internacionais bem-sucedidas e que pesquisas recentes mostram onde os países erraram em tentativas de tributar bilionários no passado.

O economista diz ainda que não haveria um impacto negativo de um imposto sobre riquezas para a grande maioria da população e refuta argumentos de que isso poderia prejudicar o crescimento econômico.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista concedida por Zucman à BBC News Brasil.

BBC News Brasil – Em seu trabalho o sr. propõe um imposto mínimo sobre grandes riquezas, um imposto global de pelo menos 2%. Qual a diferença entre cobrar imposto sobre riqueza e imposto de renda?

Gabriel Zucman – Essa é uma questão importante. Um ponto de partida é que, de acordo com estudos feitos em diversos países, os super-ricos pagam muito menos imposto proporcionalmente do que o resto da população. O motivo é que, quando você é muito rico, é muito fácil estruturar sua riqueza de forma que ela não gere o que é considerado renda.

Por exemplo, indivíduos como Jeff Bezos [fundador da Amazon] ou Elon Musk [presidente da Tesla], algumas das pessoas mais ricas do mundo, às vezes não têm nenhuma renda passível de tributação. Porque a noção de renda não é muito bem definida para os ricos, eles podem minimizar sua renda.

Então, nossa proposta é que haja um imposto global mínimo sobre riqueza, porque a riqueza é mais bem definida. Se você é bilionário, isso normalmente significa a soma do valor de mercado de todos os seus ativos menos a dívida.

Então, para as pessoas que pagam imposto de renda, não haveria cobrança a mais, mas, para os super-ricos, a cobrança seria uma porção da sua riqueza.

BBC News Brasil – Isso se aplicaria somente aos bilionários? Qual seria o ponto de corte?

Zucman – A ideia é um imposto mínimo global para os muito ricos, e quem entraria nessa categoria é algo que precisa ser discutido. Mas, para começar, cobrar 2% sobre a riqueza dos bilionários é algo que afetaria menos de 3 mil pessoas no mundo todo e geraria uma receita de US$ 250 bilhões.

Conceitualmente, não há nenhum motivo para taxar somente os bilionários, poderíamos taxar pessoas com centenas de milhões de dólares. Mas a ideia geral é ser um imposto para os super-ricos. Não é um imposto para quem só está bem de vida.

BBC News Brasil – Um acordo internacional do tipo é viável? É uma proposta bastante ambiciosa.

Zucman – É viável, com certeza. Quais são as principais dificuldades? Existe o risco de evasão fiscal. Mas a gente pode aproveitar uma iniciativa de grande sucesso em cooperação internacional da última década: a criação do sistema automático de troca de informações bancárias. Isso tornou mais difícil para os ricos esconderem ativos.

Existe a questão de como medir a riqueza, mas, para isso, só precisamos formalizar regras comuns para a avaliação da riqueza, e isso é factível. Outro risco é a competição tributária [quando países ou Estados diminuem os impostos para atrair os ricos], mas um acordo internacional diminui as chances de países “perderem” residentes, porque vai haver um imposto mínimo global.

BBC News Brasil – Mesmo se houver uma cooperação internacional para um imposto mínimo, pode haver países que decidam não aderir. O que impede os super-ricos de se mudarem para esses países? Isso seria algo que precisaria ser unânime para dar certo?

Zucman – Com certeza, haveria países que ficariam de fora do acordo. Mas não precisamos de um consenso global, porque nunca vai haver um consenso realmente global. É possível ter um grande número de países, como aconteceu em 2021, quando 130 países concordaram com um imposto mínimo de 15% para multinacionais.

Alguns países não ratificaram o acordo, mas há uma cláusula que diz que os países que ratificam o acordo têm o direito de tributar as empresas multinacionais dos países que não cooperarem para que a sua taxa efetiva de imposto também atinja 15%, então, poderíamos aplicar essa lógica na tributação dos super-ricos.

É possível que um grande número de países concordem, mas mesmo que alguns não concordem, isso não seria um problema, porque sempre podemos arrecadar os impostos que os outros países não arrecadam. Os países podem dizer, ‘olha, mesmo que você se mude para um paraíso fiscal, vamos continuar cobrando o imposto, então a mudança nem faz mais sentido’. Cria-se um mecanismo que, se um país não arrecadar aquele imposto, vai ter mais dinheiro na mesa para os outros arrecadarem.

BBC News Brasil – Como isso funcionaria?

Zucman – Haveria dificuldades se fosse um acordo somente de países pequenos. Mas, se grandes países do G20 concordarem e uma grande massa crítica aderir, não seria um problema se alguns outros países não aderissem, porque os países que aderissem poderiam cobrar os bilionários até atingir 2% da riqueza total – na medida em que eles têm necessariamente investimentos nos países que ratificaram ou durante o tempo em que passam nesses países.

Hoje, os muito ricos obtêm sua riqueza por possuírem empresas que têm clientes em todo o mundo e produzem em todo o mundo. Foi assim que se resolveu o problema da competição tributária no acordo para o imposto mínimo sobre multinacionais.

O resumo é que é possível criar esse imposto de uma forma que os ricos não poderiam evitá-lo se mudando. É muito importante entendermos que a competição tributária internacional não é uma lei da natureza. É uma escolha política. Podemos escolher tolerar isso ou não.

BBC News Brasil – Falamos de dificuldades operacionais e soluções, mas e as dificuldades políticas?

Zucman – A gente vê que há um caminho político em muitos países para isso. Um exemplo marcante são os Estados Unidos. Olha a evolução, é bem incrível. Em 2019, 2020, o presidente Joe Biden fez campanha contra um imposto sobre muito ricos. E, agora, ele apresentou um imposto de 25% sobre a renda de bilionários – com uma noção bem abrangente do que é renda.

Se você olhar para pesquisas de opinião de muitos países, vê que existe um apoio popular enorme para um sistema tributário mais progressista. Estamos falando de 70% a 80% de apoio entre pessoas de diversas orientações políticas.

Hoje, existe um entendimento melhor do que precisa ser feito concretamente para lidar com imposto sobre grandes riquezas. Muitos países tiveram impostos sobre riqueza no passado, mas que foram muito mal desenvolvidos, havia muita evasão fiscal, e os países toleravam a competição fiscal. Mas, desde então, tem havido muita pesquisa para entender essa experiência histórica, para aprender com os erros que alguns países cometeram. Então existem condições ideais para isso em muitos países grandes.

BBC News Brasil – Um argumento frequentemente usado por quem se opõe a essa ideia é que o imposto poderia desencorajar o crescimento econômico e diminuir o ritmo de geração de riqueza.

Zucman – O impacto negativo de um imposto sobre grandes fortunas seria zero para a grande maioria dos contribuintes e seus negócios. O impacto sobre o crescimento econômico seria, na verdade, positivo, porque a arrecadação poderia ser usada para ampliar o acesso à educação e à saúde e ampliar a infraestrutura, que são a chave do crescimento econômico.

Para a sociedade, o efeito seria muito positivo não só pelos investimentos possíveis gerados pela arrecadação, mas por outras razões. Quando os super-ricos conseguem não pagar impostos, é o resto da população que paga, e isso não é sustentável.

Um acordo reforçaria a confiança nas instituições democráticas e tornaria a globalização mais aceitável. E, com isso, os bilionários teriam benefícios, e seus negócios também. Eles deveriam apoiar – alguns apoiam.

BBC News Brasil – Quais são as áreas que criam mais oportunidades para evasão fiscal? Em seu relatório, o sr. citou o mercado imobiliário.

Zucman – Sim, o mercado imobiliário é uma das áreas, porque não está incluído no sistema de troca automática de informação bancária. É um ponto cego, mas a solução é muito simples: basta incluir propriedades imobiliárias no sistema.

BBC News Brasil – E as outras áreas? Hoje há uma preocupação com criptomoedas.

Zucman – Há evasão no mercado de criptomoedas com certeza. Mas, hoje, a principal forma dos muito ricos de evitar pagar impostos é criar empresas fantasmas, holdings artificiais que administram os negócios para evitar qualquer imposto de renda.

É um tipo de planejamento tributário, uma zona cinzenta entre evitar impostos e evasão fiscal. Essas empresas não têm nenhuma atividade econômica de fato. Esse é um problema que um imposto mínimo global sobre riquezas ajudaria a resolver.

BBC News Brasil – No Brasil, não são cobrados impostos sobre lucros e dividendos. O que o sr. pensa sobre isso?

Zucman – É um erro. Quase todos os países que têm imposto de renda também tributa dividendos. O problema de fazer isso é que dividendos são uma das principais formas de renda dos muito ricos, então, o que está acontecendo é que você não está tributando os mais ricos, o que é muito injusto.

O outro problema é que cria uma forma de evitar o pagamento de impostos. Uma das regras para uma legislação tributária eficiente é tributar diferentes formas de renda da mesma forma, assim as pessoas não podem estruturar sua renda para pagar menos impostos.

BBC News Brasil – A escola de pensamento que o sr. e Thomas Piketty seguem argumenta que o aumento da desigualdade vai gerar instabilidade política no longo prazo. Seu trabalho é uma crítica ao capitalismo ou uma maneira de “salvá-lo”?

Zucman – Meu trabalho é uma crítica ao capitalismo, no sentido de que há necessidade de uma crítica, porque sempre podemos fazer melhor. A forma como tributamos neste momento tem esse problema muito óbvio e gritante: o fato de favorecer a concentração de riquezas e a desigualdade. Concentração de riqueza significa também concentração de poder, o que corrói a democracia.

Estou muito focado em corrigir esse problema específico. Não vai consertar o capitalismo. Mas, junto com um imposto de renda progressivo, junto com um imposto sobre grandes heranças, pode ter um efeito grande.

O imposto sobre grandes riquezas não vai salvar o capitalismo, mas é um primeiro passo.

Portugal: corrida eleitoral entra na última semana com cenário indeciso

Lisboa — A seis dias das eleições que vão definir o novo governo, Portugal vive um tudo ou nada entre os principais partidos políticos. Com base nas muitas pesquisas divulgadas nos últimos dias — uma delas, diária, realizada pelo instituto brasileiro Ipespe para a CNN local —, não é possível cravar o vencedor que sairá das urnas em 10 de março. O Partido Socialista (PS), que comandou o país nos últimos oito anos, e a Aliança Democrática (AD), liderada pelo Partido Social Democrático (PSD), de centro-direita, têm se revezado nas duas primeiras colocações, com o fantasma da ultradireita do Chega a ameaçá-los.

O grande desafio em meio a essa disputa tão acirrada é convencer os portugueses a saírem de casa para votar. Nas últimas 15 eleições, cinco em cada 10 cidadãos não exerceram o dever cívico. Não por acaso, Portugal está entre os cinco países da União Europeia (UE) onde menos os eleitores votam. Diante desse quadro, os indecisos ganham uma enorme relevância. Os levantamentos indicam que 20% dos portugueses ainda não sabem que partido vão escolher nas cédulas de votação.

Ontem, perto de sete mil eleitores votaram de forma antecipada na Cidade Universitária de Lisboa. Entre eles, o presidente Marcelo Rebelo de Sousa, numa forma de estimular o comparecimento às urnas no próximo domingo. Após depositar o voto na urna, o chefe de Estado considerou a campanha “esclarecedora”, sem entrar em detalhes. “Queria apelar aos portugueses para virem votar. Os que ainda puderem votar hoje (ontem), que venham. Os que tiverem optado por votar no próprio dia, organizem o dia para votar”, disse.

Como o sistema político de Portugal é semiparlamentarista, os cidadãos não votam em candidatos, mas nas legendas, que apresentam uma lista de nomes aptos a uma vaga na Assembleia da República. As eleições foram antecipadas em dois anos, após o presidente da República aceitar a renúncia do socialista António Costa do cargo de primeiro-ministro. Ele foi acusado pelo Ministério Público de suspeitas de corrupção, o que não foi provado até agora. O presidente também dissolveu o Parlamento.

Há, na avaliação de Ana Sá Lopes, jornalista e colunista de Política do jornal Público, chances reais de Portugal dar uma guinada à direita, com a Aliança Democrática, ante a fadiga dos eleitores depois de oito anos do PS no comando do país. A esse cansaço devem se somar as denúncias de corrupção contra o atual governo e a sensação dos portugueses de que a qualidade de vida piorou. Os eleitores têm dificuldades em perceber os feitos de António Costa, como a redução da dívida pública para menos de 100% do Produto Interno Bruto (PIB), a reativação da economia no pós-pandemia — Portugal teve um dos maiores crescimentos no ano passado (2,3%) entre os países da Europa —, a derrubada da inflação e a queda do desemprego.

Imigração e aborto

Os últimos dias, no entanto, deram um ânimo novo aos socialistas. Além de António Costa, que ainda tem um grande capital político, ter subido ao palanque a fim de pedir votos para Pedro Nuno Santos, candidato a primeiro-ministro do PS, os dois principais concorrentes — a Aliança Democrática e o Chega — se meteram em confusões que, certamente, custarão votos. O grupo de centro-direita, liderado por Luís Montenegro, decidiu convocar para o corpo a corpo com os eleitores duas figuras polêmicas: o ex-primeiro-ministro Passos Coelho, que promoveu um grande arrocho no país, cortando, inclusive, salários e aposentadorias durante a crise financeira entre 2010 e 2011; e Paulo Núncio, cotado para um ministério.

Passos Coelho colocou no debate eleitoral a questão imigratória, com um discurso altamente xenófobo, semelhante ao ostentado pela extrema direita. Ele associou a presença de estrangeiros no país — liderados pelos brasileiros — à sensação de insegurança entre os cidadãos nacionais. Houve uma gritaria contrária ao ex-primeiro-ministro, inclusive, dentro do PSD. É sabido que Portugal praticamente pararia sem a presença dos imigrantes, que têm ocupado vagas em setores estratégicos da economia, com o turismo, que responde por 18% da geração de riqueza todos os anos. Núncio, por sua vez, levantou a possibilidade de Portugal rever a lei que autoriza o aborto, uma conquista da qual a maior parte da sociedade local se orgulha.

Já a ultradireita foi atropelada pelas denúncias de fraudes em doações ao Chega. O partido de André Ventura, candidato a primeiro-ministro, teria violado a lei de doações e recebido financiamentos proibidos em suas contas em 2019. As suspeitas surgiram com base em registros da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (ECFP), que funciona junto ao Tribunal Constitucional. A legenda, que aparece com cerca de 16% das intenções de votos nas pesquisas, nega as acusações. E, para tentar confrontá-las, Ventura está recorrendo ao mesmo expediente usado por Donald Trump, nos Estados Unidos, e Jair Bolsonaro, no Brasil: colocar o sistema eleitoral sob suspeição.

Essa postura não surpreende Alaor Leite, professor de Direito Penal e de Processos na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Para ele, o Chega replica em Portugal a estratégia de desqualificar e minar os Poderes constituídos, com foco principal no Judiciário. “As legendas de extrema direita se aproveitam do descontentamento de uma certa camada da sociedade, que se sente desprestigiada ante uma elite que não se comove com o sofrimento diário da população. O que é diferente em Portugal é que esse grupo já tem representação parlamentar relevante — é dono da terceira bancada da Assembleia da República. Portanto, não expressa uma insatisfação que deve ser recolhida pela política, pois já faz parte da política”, explica.

Nessa estratégia radical, acrescenta o professor, insere-se o ataque à imigração, como visto agora e que prevaleceu na extrema-direita do século passado, responsável por ditaduras terríveis, como a salazarista, em Portugal. “Esses grupos extremistas precisam encontrar uma explicação, ainda que falsa, da queda da qualidade de vida e do enfraquecimento da classe média. E optam, muitas vezes, por fatores externos, terceirizando o problema. É uma agenda natural, ainda que o país precise de mão de obra estrangeira. E cola porque ninguém é confrontado com o espelho”, afirma. Ele não esconde a preocupação com uma possível guinada do país à direita, com a possibilidade de uma coligação com a ultradireita populista para a formação de um governo.

Desinformação e manipulação

Para a cientista política Ana Paula Costa, vice-presidente da Casa do Brasil em Lisboa, as atuais eleições têm sido bastante desafiadoras em vários níveis, com novos elementos e um debate intensificado à direita e à esquerda. “Os partidos ampliaram as campanhas nas redes sociais, o que é uma mais-valia, pois alarga a discussão política na internet, mas também é um perigo, pois há muita desinformação e manipulação de fatos, sobretudo, por parte do Chega. Isso confunde o eleitor e prejudica a qualidade da democracia portuguesa”, diz. “Além disso, a imigração tem sido bastante politizada, sendo um tema de debate nos diferentes partidos e entre os eleitores”, emenda.

Na avaliação de Ana Paula, está evidente o aumento das tensões políticas e sociais a respeito da imigração, fruto de uma tentativa da extrema direita de criar guerras culturais ao associar, erroneamente, a imigração ao perigo da criminalidade e ao disseminar falsas teorias, como a da substituição dos europeus por uma população miscigenada. “Infelizmente, vimos que esse discurso, que associa a imigração ao perigo, foi mobilizado por Passos Coelho, ex-primeiro-ministro do PSD, que se posiciona no centro-direita do espectro político. Isso demonstra como a extrema direita consegue condicionar a direita democrática e definir o tom do debate político”, alerta.

Nesse contexto, ressalta a cientista política, pode-se ignorar a baixa representatividade da diversidade portuguesa na lista de candidatos dos partidos. “A inclusão de imigrantes e de pessoas diversas, comprometidas com a igualdade, a justiça social e a democracia na lista dos partidos da esquerda e da centro-esquerda, por exemplo, poderia ter sido uma mensagem sobre o profundo afastamento e o repúdio à discriminação e às falsas teorias de substituição populacional, impulsionadas pelos movimentos e partidos anti-imigração e de extrema-direita que afloram em Portugal. Apenas o Bloco de Esquerda (BE) tem uma candidata que representa a imigração em lugar elegível”, detalha.

Outros temas, como a habitação, saúde e trabalho continuam em cima da mesa, pois, segundo Ana Paula, são muito caros à sociedade portuguesa e sempre estão presentes nas campanhas eleitorais, principalmente neste momento em que o país vive uma crise de moradia. Ela assinala, ainda, que as sondagens apontam que, tanto à direita quanto à esquerda, será difícil formar um governo de maioria, e o Chega terá um crescimento notável, podendo mais que dobrar a atual bancada, de 12 parlamentares. “Na última semana, houve um crescimento da AD em relação ao Partido Socialista PS, logo, tudo indica que teremos uma Assembleia da República mais à direita e com um partido de extrema direita mais fortalecido e com mais deputados”, complementa.

Há uma década em Portugal, a brasileira Lina Moscoso, doutora em Ciência da Comunicação, diz que nunca foi tão importante a participação majoritária dos portugueses nessas eleições. Com direito a voto, por ter a cidadania lusa, ela acredita que o momento é de fortalecer a democracia, que está ameaçada em Portugal e em todo mundo. “O direito ao voto foi conseguido com muita luta, especialmente o voto feminino. Portanto, não se pode abrir mão desse dever cívico, mesmo que o partido escolhido não seja o vencedor”, afirma.

Ela enfatiza que a esquerda tem perdido muitos eleitores por conta de uma série de razões e a direita populista está conseguindo atrair os jovens, que não têm a memória do período da ditadura. “Vejo um quadro bastante complicado”, frisa.

Avaliação semelhante é feita pelo embaixador português aposentado António Luís Cotrim, que lutou contra a ditadura de Salazar e foi preso três vezes durante a Revolução dos Cravos, que restabeleceu a democracia em Portugal. “Não descarto a possibilidade de a Aliança Democrática, se tiver a maior parte dos votos, se aliar ao Chega para formar o governo. O discurso de parte dos integrantes dos dois blocos está muito parecido”, acrescenta.

Tanto Lina quanto Cotrim acreditam que pode haver surpresas nas urnas. Nas eleições de dois anos atrás, as pesquisas de intenção de votos não conseguiram captar claramente o pensamento dos eleitores. Os levantamentos, em maioria, davam vitória para o PSD, mas o Partido Socialista foi o grande vencedor, com maioria absoluta. Ou seja, não precisou de coligações para governar. O risco, acreditam, é de que, daqui a dois anos, Portugal tenha de realizar novas eleições, porque o governo caiu, e os radicais da ultradireita estejam ainda mais fortes.

O maior país muçulmano do mundo que busca se tornar uma das 5 maiores economias

A maioria dos casais de meia-idade estão se preparando para se aposentar caso possam arcar com isso, mas Musmulyadi, 55 anos, e sua esposa Nurmis, 50, estão indo no caminho contrário à tendência.

Eles acabaram de migrar milhares de quilômetros para Nusantara, a futura capital da Indonésia que está emergindo da floresta tropical em meio aos orangotangos.

“Deve ser mais fácil encontrar emprego aqui enquanto eles ainda estão construindo a infraestrutura”, disse Musmulyadi à BBC Indonésia.

A futura casa deles hoje é um canteiro de obras em Nusantara, palavra javanesa para “arquipélago”, na ilha de Bornéu.

Nurmis mistura o cimento enquanto Musmulyadi coloca os ladrilhos.

O sonho deles é comum entre os indonésios: Musmulyadi espera conseguir um emprego estável e tornar-se subcontratado no megaprojeto.

Desde que o presidente Joko Widodo, popularmente conhecido como Jokowi, anunciou a construção de Nusantara há dois anos, os negócios floresceram.

O governo prevê que 2 milhões de pessoas viverão aqui até 2029.

Mas a dezenas de quilômetros de distância, Syamsiah e seu marido Pandi estão preocupados com a possibilidade de serem despejados.

Eles pertencem a uma comunidade indígena de 20 mil pessoas e não têm propriedade legal de suas terras, onde sua família vive há gerações.

Pandi acordou uma manhã e viu o seu terreno demarcado, sem qualquer aviso prévio.

O governo quer tirar moradores dali com o argumento da proteção contra inundações. Entretanto, em fevereiro, Pandi conseguiu impedir a sua remoção na Justiça.

“Faço isso pelo futuro dos meus filhos e netos”, disse ele à BBC.

“Se eu não fizesse nada, os meus filhos e netos seriam apenas um lixo para o governo. É assim que lutamos contra a injustiça”.

Mas ele pode ter sido beneficiado apenas por um adiamento temporário, uma vez que outras comunidades indígenas já foram deslocadas após o governo pagar indenizações, embora a preços considerados muito baixos pelas famílias afetadas.

As histórias de Mulyadi e Pandi mostram como os projetos do presidente Widodo são muitas vezes uma faca de dois gumes: contestados, mas também uma potencial fonte de oportunidades.

Top 5 economias?

De acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), quando Widodo assumiu a presidência pela primeira vez em 2014, a Indonésia era a décima maior economia do mundo, com base na paridade do poder de compra (PPC).

Uma década depois, a Indonésia subiu para o sétimo lugar — atrás da China, dos Estados Unidos, da Índia, do Japão, da Alemanha e da Rússia.

Até 2027, prevê-se que o país com a maior população muçulmana do mundo ultrapasse economicamente a Rússia.

A nação do Sudeste Asiático realizou eleições presidenciais em 14 de fevereiro, onde números não oficiais mostram que o ministro da Defesa, Prabowo Subianto, está no caminho para vencer num único turno.

Ele prometeu continuar as políticas econômicas de Widodo. O filho do atual presidente, Gibran Rakabuming Raka, é o companheiro de chapa de Prabowo Subianto.

“Os programas de Jokowi são bons no papel e poderão aproximar a Indonésia das previsões do FMI”, afirma Josua Pardede, economista-chefe de um dos dez maiores bancos da Indonésia, o Permata Bank.

Mas o país tem uma ambição maior — ser um dos cinco países com mais alta renda até 2045, ano do centenário da sua independência.

Para conseguir isto, a economia indonésia deve crescer 6 a 7% ao ano, afirmou o ministro das Finanças do país, Sri Mulyani.

O crescimento atualmente está em 5%.

‘Febre do níquel’

A Indonésia é famosa pela ilha turística de Bali, mas também abriga as maiores reservas de níquel do mundo — um componente essencial para a fabricação de baterias para veículos elétricos.

Quando o presidente Widodo anunciou pela primeira vez a proibição da exportação de níquel bruto em 2019, a União Europeia processou a Indonésia na Organização Mundial do Comércio (OMC).

O presidente disse que queria desenvolver o processamento na Indonésia.

Um artigo de um centro de pesquisas independente, o Institute for Development of Economic Finance, afirma que a política nacional relativa ao níquel criou empregos e fez crescer a economia.

Mas a Indonésia ainda depende fortemente do investimento chinês para construir as fundições de níquel, levantando dúvidas sobre o futuro — especialmente porque o crescimento econômico da China deverá cair de 5,2% para 4,6% este ano.

O presidente Widodo também foi criticado por estender o “tapete vermelho” ao investimento chinês e colocar em segundo plano o impacto de sua política de infraestrutura nas disputas de terras e en questões de saúde e ambientais.

“A febre do níquel faz o governo perder a cabeça”, diz Melky Nahar, coordenador da Mining Advocacy Network (Jatam), uma organização não governamental.

Passeio pelas ilhas?

A conectividade é fundamental para o desenvolvimento da Indonésia, uma vez que o país consiste em 1.700 ilhas espalhadas por três fusos horários e sua atual capital, Jacarta, está afundando no mar.

Mas as sobrancelhas levantaram-se quando o presidente Widodo assinou em 2022 uma lei determinando a mudança da capital, enquanto o mundo ainda lutava para se recuperar da pandemia de coronavírus.

Alguns países, incluindo a China, demonstraram interesse em investir na nova cidade, mas não houve nada “concreto” até o momento.

“Até agora, tem sido difícil atrair grandes investidores globais para investirem em Nusantara”, afirma Nailul Huda, do centro de pesquisas Center of Economic and Law Studies.

O presidente tentou vários métodos, incluindo a aprovação de uma lei laboral pró-investidores que grupos da sociedade civil afirmam violar os direitos dos trabalhadores.

Widodo deixará o poder em outubro e, segundo relatos, vê a construção de Nusantara como seu legado.

Mas Firman Noor, pesquisador da Agência Nacional de Investigação em Inovação (BRIN), acredita que esta já é uma história manchada.

“Em muitos aspectos, Nusantara é um reflexo de como os valores democráticos desapareceram no desenvolvimento e nas práticas políticas ao longo dos últimos 10 anos”, afirma Noor.

Entretanto, o possível novo presidente Prabowo Subianto está tentando conquistar corações e mentes prometendo políticas populistas, como leite e almoço gratuitos para mães e crianças.

Especialistas alertam que estes projetos podem onerar o orçamento, que já está sobrecarregado pelos megaprojetos do atual presidente.

“Os almoços grátis e várias outras políticas irão esgotar o orçamento do Estado, provocando a dívida nacional”, diz Huda.

“Se as políticas do próximo governo continuarem a ser tão imprudentes como esta, penso que a dívida poderá duplicar até 2029, apesar do sonho de se tornar a maior economia do mundo.”