Durante 45 anos, o pai de Rodrigo Silva exerceu a profissão de armador na construção civil. Com mãos ágeis, José Pereira da Silva moldava as estruturas de concreto e aço de grandes obras da cidade de São Paulo.

Ser armador era valorizado na maior e mais rica cidade da América Latina, e José ensinou a Rodrigo tudo sobre a atividade, que ele seguiu por uma década.

Mas, há dois anos, Rodrigo, hoje com 38 anos, trocou o canteiro de obras pelas ruas paulistanas, fazendo entregas com sua moto. Foi o ponto final de um ciclo.

“Não quero mais acordar cedo, passar frio e tomar chuva para ser pressionado por encarregado e supervisor”, diz Rodrigo à BBC News Brasil.

“Hoje, ganho mais do que antes, folgo quando quero e sou meu patrão.”

O ex-armador e agora entregador diz que outro fator que o fez trocar de profissão foi a instabilidade.

“Você começa a receber bem, mas logo depois dizem que estão tendo prejuízo e te demitem”, diz Rodrigo.

A mudança, explica ele, foi pensando no seu próprio bem-estar e da sua família.

“Meu pai falava para eu não me apegar a nenhuma obra e nem à profissão. Dizia que, se aparecesse algo melhor, era para eu ir”, afirma.

Ainda assim, Rodrigo fez questão de viajar à Nova Soure, na Bahia, onde seu pai mora atualmente, para perguntar se ele o autorizava a mudar de área.

“Ele concordou na hora.”

‘Apagão’ de mão de obra

A história da família de Rodrigo ajuda a entender por que lideranças da indústria e profissionais do setor ouvidos pela BBC News Brasil apontam para uma falta de mão obra na construção civil em São Paulo.

As fontes concordam, no entanto, que não há números exatos sobre esse eventual déficit no Estado, que representa cerca de um terço do mercado nacional, segundo o sindicato que representa os trabalhadores do setor.

De acordo com dados do Sistema do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), o Brasil encerrou o ano de 2023 com um saldo anual positivo de 158,9 mil contratações na construção civil.

Mas, no longo prazo, o número de trabalhadores no setor vem caindo.

O país tem atualmente 2,6 milhões de pessoas trabalhando diretamente na área. Em 2010, eram 3,2 milhões, quase 19% a menos.

Outro termômetro em números vem da pesquisa nacional Sondagem da Construção, feita mensalmente pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

O levantamento de fevereiro apontou que 25,7% dos empresários do setor estavam preocupados com a escassez de mão de obra no país.

Para David de Fratel, coordenador do SindusCons-SP (Sindicato da Indústria da Construção Civil), que representa as empresas do setor no Estado de São Paulo, há falta de profissionais especializados, ainda que ele não conheça levantamentos confiáveis para confirmar a percepção.

“O que existe é um déficit causado pela falta de interesse de novos entrantes”, diz Fratel.

“O jovem de hoje não quer mais a construção civil. Ele quer ser motorista de aplicativo e trabalhar em um carro com ar condicionado ou algo ligado à tecnologia”, complementa.

A visão de Fratel é reforçada por um estudo do SindusCon, feito com quase 800 mil profissionais da construção civil em 22 Estados.

O levantamento apontou que houve entre 2016 e 2023 um aumento da média de idade das pessoas que trabalham na construção de 38 para 41 anos.

“O que está acontecendo é muito grave e pode causar um apagão nas obras”, diz Fratel.

“Nossa pirâmide etária lembra a de países desenvolvidos, com entrada de poucos jovens e bastante gente mais velha. Falta atratividade e melhores condições de trabalho para atrair mão de obra.”

Renato de Sousa Correia, presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), concorda.

Ele afirma que os mais jovens estão se desinteressando pelo setor da construção por causa da exigência física da atividade.

“A pessoa precisa carregar saco pesado nas costas, tomar sol. Esse é o ponto”, diz Correa.

O presidente da CBIC reforça que não há uma pesquisa que indique a falta de trabalhadores na construção, mas afirma que, “em todas as áreas, está faltando mão de obra e vai piorar”.

No momento, o Brasil assiste ao aquecimento do mercado de trabalho em geral.

De acordo com a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o trimestre encerrado em janeiro de 2024 fechou com uma taxa de desemprego de 7,6% no Brasil.

Essa é a menor taxa para um trimestre desse período desde 2015, quando o país registrou 6,9%.

“É muito difícil ter um índice de desemprego da construção, porque a pessoa está temporariamente na profissão, mas quando sai do emprego não faz mais parte do setor. Ela pode ser o que ela quiser, padeiro, motorista etc. Portanto, acho muito difícil haver um dado segmentado de desemprego”, diz Correa.

Ele ressalta outra característica do setor, a informalidade: “Hoje, temos 7,5 milhões de pessoas no setor, mas apenas 2,6 milhões são CLT”.

Ressaca pós-pandemia, eleição, novo PAC

Entre as lideranças dos trabalhadores, o diagnóstico não muda muito.

O presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção de São Paulo (Sintracon-SP), Antônio Ramalho, também usa o termo “apagão” para falar da falta de profissionais.

Ramalho diz que faltam tanto incentivos para a entrada de novos trabalhadores como treinamento para desempregados que queiram tentar a sorte na construção.

Ele aponta ainda outro fator que torna o fenômeno ainda mais evidente: o aumento da demanda a partir do fim de 2023.

“Desde novembro, houve uma retomada de obras públicas pelo governo federal e, quando você pega as prefeituras, vê que São Paulo virou um canteiro de obras”, afirma Ramalho.

Ana Maria Castelo, professora do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV Ibre), afirma que a construção civil está demonstrando resiliência e cita como outro fator de aumento da demanda o fato de 2024 ser um ano eleitoral.

“Esse mercado também está aquecido por conta de um novo ciclo de leilões de infraestrutura, obras do metrô e o anúncio do Novo PAC [Programa de Aceleração do Crescimento]”, diz Castelo.

Em agosto passado, o governo Lula relançou o PAC, que marcou seu segundo mandato e a gestão Dilma Rousseff (PT), para alavancar os investimentos em infraestrutura e gerar empregos.

A promessa é investir R$ 371 bilhões do Orçamento da União em quatro anos.

O programa, somado às obras típicas de períodos eleitorais, como recapeamento, promete movimentar um setor que viveu altos e baixos nos últimos anos.

A construção civil teve um forte crescimento no início desta década, mas enfrentou uma queda acentuada de produção em 2023 até o novo impulso no fim do ano.

O Produto Interno Bruto (PIB) do setor disparou 12,6% em 2021, reflexo das pequenas reformas domésticas durante a pandemia, e manteve-se alto em 2022, ainda que em um patamar mais baixo, com avanço de 6,8%.

Mas, em 2023, houve uma retração de 0,5%, segundo o IBGE — enquanto isso, o PIB brasileiro cresceu 2,9%.

Ainda assim, no quarto e último trimestre do ano passado, o setor cresceu 4,2%, e a expectativa é que volte a crescer em 2024.

Baixos salários e esforço físico

Adriano José Cordeiro, de 40 anos, que trabalha como pedreiro e azulejista confirma que o mercado está aquecido e não falta serviço, mas reclama dos baixos salários.

Mesmo assim, ele não pensa em deixar a profissão, porque diz amar o que faz.

“Eles pagam diárias de R$ 150 há alguns anos. Tem muita gente pulando fora por causa disso”, diz.

“Na pandemia, só trabalhei com aplicativo (de entregas). Mas, agora, eu consegui um emprego registrado na construção e só faço entrega nas horas vagas.”

Segundo o IBGE, cerca de 1,5 milhão de brasileiros trabalhavam com aplicativos e plataformas digitais em 2022, como serviços de entrega e transporte de passageiros.

Esse número era o equivalente a 1,7% da mão de obra do setor privado.

O engenheiro civil Denis Sousa coordena as obras de três condomínios que estão sendo erguidos na Zona Leste de São Paulo e também percebe transformação nos canteiros de obras em que trabalha.

“As novas gerações têm mais acesso a outras oportunidades, e esse ensinamento de pai para filho na construção está se perdendo”, diz.

Sousa diz que, na sua percepção, os trabalhadores que mais abandonaram os canteiros foram aqueles de áreas que fazem mais esforço e correm mais risco, como carpinteiro e armador, a antiga função de Rodrigo Silva, que prefere ser entregador em tempo integral.

“O armador carrega muito peso e trabalha sob sol ou chuva. Já o eletricista raramente trabalha em locais sem cobertura e não pega tanto peso. É um trabalho que não sacrifica tanto”, explica.

O engenheiro diz que, por enquanto, o impacto principal tem sido sentido principalmente nas obras em fase inicial, quando essas funções são mais requisitadas.

Mas aponta que isso é um alerta de que também pode faltar mão de obra nos canteiros mais para a frente.

“Esse é um sinal de que em um ou dois anos isso também vai se refletir no mercado de pintores e gesseiros, por exemplo”, diz Sousa.

‘Leilão’ de pedreiros

Com o mercado aquecido e a pressão para terminar as obras antes do prazo, empresas têm feito um leilão informal por pedreiros em São Paulo, segundo Antonio Ramalho, do Sintracon-SP.

“Isso tem acontecido constantemente. A concorrência precisa do trabalhador e vai até a obra do vizinho oferecer 30% a mais para ele trabalhar na dele”, diz.

Trabalhadores de canteiros de obras em São Paulo visitados pela reportagem confirmam que as ofertas de empregos fazem parte da rotina de trabalho.

Eles contam que são frequentemente sondados por outras construtoras no canteiro de obras. Alguns chamam de “oportunidade”, outros de “leilão”.

“Quase toda semana tem encarregado esperando a gente sair na calçada para perguntar se a gente aceita ir para outra obra por um salário melhor”, diz um dos profissionais.

“Esse leilão é um sinal de que eles estão desesperados. De vez em quando, eu aceito para me valorizar.”

Outro trabalhador, que dá expediente na mesma construção, disse que nega os convites que recebe.

“Eu fico com pé atrás. Vai que eu largo meu trabalho fixo para ir para o incerto, e a obra para. Minha família fica como?”, afirma.

“Deixo isso para os mais jovens que podem se arriscar.”

Ramalho afirma que as empresas têm buscado saídas para a falta de pedreiros.

“Uma das mais usadas é muito perigosa. Estão fazendo os funcionários trabalharem 12 horas por dia, aos feriados e fins de semana para compensar essa falta de trabalhadores e não atrasar as obras”, diz Ramalho.

“Os funcionários ganham mais dinheiro, mas, por outro lado, sofrem mais lesões e problemas de saúde. As obras também ficam mais caras por conta do pagamento de tantas horas extras.”

O sindicalista defende uma qualificação em massa de profissionais para atuar na construção civil e afirma estar debatendo com empresários e governos para criar o programa “Escola Canteiro”.

Segundo ele, pela iniciativa, trabalhadores desempregados ou que recebem seguro-desemprego aprenderiam a profissão fazendo obras em bairros periféricos.

Já a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), que reúne 75 companhias do setor, informou em nota à reportagem que a “falta de mão de obra especializada é um ponto de atenção”.

Mas diz que treina constantemente seus colaboradores para que as obras avancem “sem interrupções significativas”.

Especialização e futuro da construção

Com o atual panorama, os especialistas do setor ouvidos pela BBC News Brasil afirmaram que as construtoras passaram a buscar saídas em mudanças na produção.

“Vemos uma busca pela industrialização da construção civil, com materiais pré-moldados e até módulos inteiros”, diz Ana Maria Castelo, professora da FGV.

A transformação diminuiria a necessidade de profissionais nas obras e agilizaria o processo de construção, apontam os especialistas.

O azulejista Adriano afirma que pretende se especializar para crescer na profissão e aproveitar o bom momento do mercado.

“Talvez eu faça um curso de mestre de obra para ser promovido e me tornar encarregado”, diz Adriano.

O azulejista avalia que, mesmo com os baixos salários oferecidos pelo mercado, não haverá escassez de mão de obra, pois muitos profissionais aceitam ganhar o que as empresas oferecem.

“Eu participo de muitos grupos de WhatsApp (com ofertas de emprego). E, sempre que aparece uma vaga, por menor que seja o salário, alguém sempre aceita”, diz.

Já Rodrigo Silva, que está há dois anos longe da construção civil, conta que já recebeu muitas ofertas para trabalhar novamente como armador e negou todas.

“Já me chamaram muitas vezes para voltar. Mas eu não tenho mais paciência para trabalhar em local fechado e com muita gente querendo mandar”, diz.

Questionado se ensinaria a profissão de armador ao filho, Rodrigo Silva diz que, se for necessário, ensinará “com muita honra”.

“Meu filho tem 2 anos e não sei como estará a construção civil quando ele crescer, mas vou tentar colocar ele para trabalhar com outra coisa. Quero ele na frente do computador.”

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