O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou ontem que o governo vai editar Medida Provisória (MP) na semana que vem para permitir a retomada das linhas de financiamento com juros subsidiados do Plano Safra, após a suspensão dos empréstimos irritar o agronegócio e abrir nova crise na gestão de Luiz Inácio Lula da Silva.
Auxiliares do Palácio do Planalto avaliam que o episódio evidenciou mais uma falha de comunicação do Ministério da Fazenda, como no caso da medida da Receita Federal que afetou a credibilidade do Pix.
O anúncio de Haddad de que a solução viria via MP ocorreu só oito horas após a própria Fazenda dizer que iria consultar o Tribunal de Contas da União (TCU) sobre alternativas para voltar a oferecer o crédito agropecuário.
A suspensão dos empréstimos com recursos equalizados (mecanismo de subvenção usado para garantir juros mais baratos do que os de mercado) foi anunciada pelo Tesouro Nacional anteontem em ofício a instituições financeiras. O motivo citado foi o atraso na aprovação do Orçamento de 2025 pelo Congresso.
Sem o aval dos parlamentares à peça orçamentária, os gastos do governo ficam limitados a 1/12 avos por mês. Ao mesmo tempo, o aumento da Selic exige mais recursos do Tesouro para equalizar as taxas do programa agropecuário — ou seja, cobrir o custo entre os juros de mercado e a taxa cobrada no Plano Safra.
Risco de pedalada
Em agosto de 2024, quando a proposta orçamentária foi enviada ao Congresso, a Selic estava em 10,75%. Hoje, está em 13,25% ao ano e deve subir. Nesse caso, o governo precisa ajustar a previsão de despesa com os juros subsidiados do programa no Orçamento.
Diante da repercussão negativa, a Fazenda divulgou nota às 7h19 de ontem em que dizia que o governo iria enviar ofício ao TCU para consultar como retomar o pagamento da subvenção sem a aprovação do Orçamento.
Por volta das 15h, Haddad deu nova versão e disse que o governo iria enviar ao Congresso a MP com crédito extraordinário de R$ 4 bilhões para evitar a descontinuidade do programa. O crédito, segundo Haddad, vai ficar dentro do limite de gastos do arcabouço fiscal — normalmente é uma exceção ao teto.
— O presidente (Lula) pediu uma solução imediata para o problema. O fato de não ter o Orçamento aprovado efetivamente coloca problemas na execução orçamentária. Isso poderia comprometer o andamento do Plano Safra, mas, em virtude de uma determinação do presidente da República, estamos editando uma MP abrindo crédito extraordinário para atender as linhas de crédito do Plano Safra — afirmou Haddad, em entrevista convocada de última hora no escritório do Ministério da Fazenda, em São Paulo.
A decisão de lançar a MP, segundo o ministro, foi adotada após conversa com o presidente da Corte de Contas, Vital do Rêgo. Segundo fontes, houve mal-estar na Corte com a consulta anunciada pela Fazenda, especialmente considerando que há poucos dias os ministros refutaram o pagamento do Pé-de-Meia fora do Orçamento.
Além disso, foi aberta auditoria no TCU para avaliar políticas públicas financiadas fora das regras orçamentárias.
Falha de comunicação
Análises preliminares de técnicos do TCU apontaram que pagar a equalização sem previsão orçamentária poderia ser enquadrado como uma espécie de pedalada. Um artigo da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) proíbe operação de crédito entre instituição financeira estatal e o ente da federação que a controla. A União tem 50% de participação no Banco do Brasil, que é líder em crédito rural.
— O ministro do TCU deixou claro que, efetivamente, sem essa solução que foi encontrada, não haveria possibilidade do Plano Safra. Então a solução é um crédito extraordinário em valor necessário para que não haja descontinuidade da linha de crédito, algo em torno de R$ 4 bilhões — disse Haddad.
No Palácio do Planalto, a decisão de suspender linhas de financiamento do Plano Safra foi comparada ao episódio da crise do Pix, que gerou desgastes na aprovação de Lula. A exemplo do caso do monitoramento de movimentações financeiras pela Receita, a pasta de Haddad só explicou a medida após repercussão negativa.
A avaliação de interlocutores de Lula é que a Fazenda deveria ter feito anúncio à imprensa antes de enviar o ofício aos bancos. O entendimento é que era preciso responsabilizar o Congresso por não ter votado o Orçamento e não deixar o ônus para o governo.
O ministro da Secretaria de Comunicação Social, Sidônio Palmeira, que assumiu em janeiro, tem pregado em reuniões que o governo deve se antecipar a medidas que possam ter repercussão negativa ou ser distorcidas pela oposição.
“O ministro do TCU deixou claro que, efetivamente, sem essa solução que foi encontrada, não haveria possibilidade do Plano Safra”, disse Fernando Haddad
Setores do governo entendem que a suspensão de linhas do Plano Safra tem potencial de desgaste, embora num grau menor do que o caso do Pix. A medida atinge produtores rurais, que já são majoritariamente opositores do PT.
A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), principal representante do setor, criticou a suspensão e o planejamento fiscal do governo em nota. “O produtor rural não pode ser prejudicado pelos entraves na aprovação do Orçamento e pela falta de planejamento perante os desafios fiscais enfrentados atualmente. A CNA entende as dificuldades orçamentárias, porém sugere que o governo reveja a decisão e garanta os recursos”, diz a entidade.
A medida foi criticada na bancada ruralista do Congresso. A Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) se manifestou, em nota, contra a paralisação das linhas: “Culpar o Congresso Nacional pela própria incapacidade de gestão dos gastos públicos não resolverá o problema. A má gestão impacta no aumento dos juros e impede a implementação total dos recursos necessários”.
Impacto na inflação
Para especialistas, a suspensão dos recursos poderia afetar a produção nas próximas safras, com impacto nos custos pagos pelo agricultor e nos preços ao consumidor. A curto prazo não há essa leitura, pois as áreas já foram plantadas.
— Poderia atrapalhar o plantio das próximas safras, principalmente pequenos e médios produtores, que são mais dependentes do crédito agrícola, e com isso diminuir a oferta de alimentos e provocar subida de preços — ressaltou José Carlos Hausknecht, da MB Agro.
Rodrigo Lima, diretor-geral do Agroícone, avalia que, a longo prazo, o congelamento de linhas de crédito subsidiadas do Plano Safra pode prejudicar investimentos em correção do solo, maquinários, plantios de lavouras permanentes, afetando a produtividade. Isso pode refletir na oferta e no preço dos alimentos.
Tiago Sbardelotto, economista da XP Investimentos, diz que a solução de abrir crédito extraordinário afasta o risco de “pedalada”, ou seja, de bancos financiarem uma política pública, o que corresponderia a uma operação de crédito, algo vedado pela LRF e que foi apontado como pedalada pelo TCU na época da ex-presidente Dilma Rousseff.
— Se o governo incluir o valor no Orçamento depois que for aprovado, ou seja, se não usar o crédito extraordinário para aumentar artificialmente o espaço disponível no limite de despesas, está blindado de questionamentos. Agora, se usar o crédito para reduzir a dotação referente ao Plano Safra no Orçamento, aí poderemos ter algum questionamento sobre desvirtuamento da finalidade do crédito.