Benito Salomão*
Em dezembro, os preços financeiros passaram por uma intensa volatilidade. Naquele período, leu-se na imprensa que esse comportamento estava relacionado com a dinâmica da política fiscal, após o fatídico anúncio da isenção do Imposto de Renda para contribuintes cuja renda é inferior a R$ 5.000. Aquele contexto, já revertido nas primeiras semanas de 2025, estimulou o debate sobre uma eventual dominância fiscal no país. Tem sido muito comum, na última década, diagnosticar dominância fiscal como a causa de todas as turbulências. Isso leva, fatalmente, à banalização do conceito.
O conceito de dominância fiscal é de Sargent e Wallace (1981). Antes dessa contribuição, prevalecia no debate econômico a ideia de Friedman (1970, pág. 24) de que a “inflação é sempre e em todo lugar um fenômeno monetário”. Essa hipótese esteve calcada na tradicional visão monetarista, observada nos clássicos modelos de Curva de Phillips, cujos resultados de política supunham que a política monetária seria eficiente e suficiente para desinflacionar uma economia. Foram Sargent e Wallace que, pela primeira vez, demonstraram, a partir da formulação do conceito de dominância fiscal, que a inflação pode ter causas fiscais.
A tese dos autores é a de que a economia pode se organizar em dois regimes de coordenação entre as políticas fiscal e monetária. Se a política fiscal é intertemporalmente equilibrada, tal como nos modelos de Equivalência Ricardiana de Barro (1974), há dominância monetária, o que significa dizer que a inflação responde aos estímulos ou desestímulos da política monetária tal qual o observado no modelo monetarista. Por outro lado, se há subordinação da política monetária à fiscal, de forma que os deficits contraídos obriguem a autoridade monetária a financiá-los por via das receitas de senhoriagem (emissão monetária), há dominância fiscal e o BC perde o controle sobre a inflação.
Neste sentido, para que haja dominância fiscal, é condição sine qua non se verificar simultaneamente: 1) déficits; 2) receitas de senhoriagem e; 3) inflação. A economia brasileira vem operando em déficits sistemáticos desde 2014, ano da crise das pedaladas fiscais. No entanto, esses déficits não têm sido financiados via senhoriagem, mas sim pela emissão da dívida pública que cresceu fortemente entre 2014 e 2022. Porém, uma dívida pública elevada não configura dominância fiscal no sentido clássico. Muitos economistas têm confundido o conceito clássico de dominância fiscal com as abordagens mais contemporâneas da Teoria Fiscal do Nível de Preços (TFNP) de Cochrane (2021). Existem pontos de semelhança entre as duas abordagens, mas não pode se dizer que são a mesma coisa.
Na TFNP, a inflação é causada quando as expectativas dos resultados primários são insuficientes para estabilizar o endividamento público, indicando que no futuro a dívida seria monetizada (paga via emissão monetária) resultando em uma expansão da inflação já no presente. Encontrar o ponto de monetização dessa dívida, no entanto, não é tarefa simples.
Ademais, mesmo a TFNP, que incorpora a dívida pública como uma variável importante na determinação da inflação, não parece ser o caso no Brasil. Nos últimos dias, o IBGE divulgou a inflação relativa a janeiro, os 0,16% de elevação dos preços foi a menor taxa para este mês desde o plano Real. É bem verdade, que este dado contrasta com uma inflação acumulada acima da meta, porém não se trata de uma inflação crônica, nem explosiva, tão pouco tem cara de ter causas fiscais. É preciso lembrar que o deficit do governo central de 0,09% em 2024, foi o menor dos últimos 10 anos e é possível que haja um pequeno superavit em 2025.
Essa inflação, que vem performando acima da meta desde a saída da pandemia, teve seu impulso inicial atrelado à gargalos em cadeia de suprimentos (um choque de oferta clássico). De lá para cá, consecutivos choques como a eclosão da guerra na Europa em 2022 e os choques climáticos que vêm afetando preços de commodities em vários locais do mundo têm contribuído, cada um ao seu tempo, para tornar essa inflação resiliente.
Some-se a isto os consecutivos alongamentos do horizonte de convergência para a meta produzidos pelo BCB durante este período, o que certamente tem contribuído para a banalização da meta. Em suma, não há dominância fiscal no Brasil, há sim uma dominância reputacional de uma política monetária que tem sido ineficaz em cumprir seu principal mandato, o de produzir a convergência da inflação para a sua meta.
*Professor do Instituto de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (IERI-UFU)