Lisboa — A seis dias das eleições que vão definir o novo governo, Portugal vive um tudo ou nada entre os principais partidos políticos. Com base nas muitas pesquisas divulgadas nos últimos dias — uma delas, diária, realizada pelo instituto brasileiro Ipespe para a CNN local —, não é possível cravar o vencedor que sairá das urnas em 10 de março. O Partido Socialista (PS), que comandou o país nos últimos oito anos, e a Aliança Democrática (AD), liderada pelo Partido Social Democrático (PSD), de centro-direita, têm se revezado nas duas primeiras colocações, com o fantasma da ultradireita do Chega a ameaçá-los.
O grande desafio em meio a essa disputa tão acirrada é convencer os portugueses a saírem de casa para votar. Nas últimas 15 eleições, cinco em cada 10 cidadãos não exerceram o dever cívico. Não por acaso, Portugal está entre os cinco países da União Europeia (UE) onde menos os eleitores votam. Diante desse quadro, os indecisos ganham uma enorme relevância. Os levantamentos indicam que 20% dos portugueses ainda não sabem que partido vão escolher nas cédulas de votação.
Ontem, perto de sete mil eleitores votaram de forma antecipada na Cidade Universitária de Lisboa. Entre eles, o presidente Marcelo Rebelo de Sousa, numa forma de estimular o comparecimento às urnas no próximo domingo. Após depositar o voto na urna, o chefe de Estado considerou a campanha “esclarecedora”, sem entrar em detalhes. “Queria apelar aos portugueses para virem votar. Os que ainda puderem votar hoje (ontem), que venham. Os que tiverem optado por votar no próprio dia, organizem o dia para votar”, disse.
Como o sistema político de Portugal é semiparlamentarista, os cidadãos não votam em candidatos, mas nas legendas, que apresentam uma lista de nomes aptos a uma vaga na Assembleia da República. As eleições foram antecipadas em dois anos, após o presidente da República aceitar a renúncia do socialista António Costa do cargo de primeiro-ministro. Ele foi acusado pelo Ministério Público de suspeitas de corrupção, o que não foi provado até agora. O presidente também dissolveu o Parlamento.
Há, na avaliação de Ana Sá Lopes, jornalista e colunista de Política do jornal Público, chances reais de Portugal dar uma guinada à direita, com a Aliança Democrática, ante a fadiga dos eleitores depois de oito anos do PS no comando do país. A esse cansaço devem se somar as denúncias de corrupção contra o atual governo e a sensação dos portugueses de que a qualidade de vida piorou. Os eleitores têm dificuldades em perceber os feitos de António Costa, como a redução da dívida pública para menos de 100% do Produto Interno Bruto (PIB), a reativação da economia no pós-pandemia — Portugal teve um dos maiores crescimentos no ano passado (2,3%) entre os países da Europa —, a derrubada da inflação e a queda do desemprego.
Imigração e aborto
Os últimos dias, no entanto, deram um ânimo novo aos socialistas. Além de António Costa, que ainda tem um grande capital político, ter subido ao palanque a fim de pedir votos para Pedro Nuno Santos, candidato a primeiro-ministro do PS, os dois principais concorrentes — a Aliança Democrática e o Chega — se meteram em confusões que, certamente, custarão votos. O grupo de centro-direita, liderado por Luís Montenegro, decidiu convocar para o corpo a corpo com os eleitores duas figuras polêmicas: o ex-primeiro-ministro Passos Coelho, que promoveu um grande arrocho no país, cortando, inclusive, salários e aposentadorias durante a crise financeira entre 2010 e 2011; e Paulo Núncio, cotado para um ministério.
Passos Coelho colocou no debate eleitoral a questão imigratória, com um discurso altamente xenófobo, semelhante ao ostentado pela extrema direita. Ele associou a presença de estrangeiros no país — liderados pelos brasileiros — à sensação de insegurança entre os cidadãos nacionais. Houve uma gritaria contrária ao ex-primeiro-ministro, inclusive, dentro do PSD. É sabido que Portugal praticamente pararia sem a presença dos imigrantes, que têm ocupado vagas em setores estratégicos da economia, com o turismo, que responde por 18% da geração de riqueza todos os anos. Núncio, por sua vez, levantou a possibilidade de Portugal rever a lei que autoriza o aborto, uma conquista da qual a maior parte da sociedade local se orgulha.
Já a ultradireita foi atropelada pelas denúncias de fraudes em doações ao Chega. O partido de André Ventura, candidato a primeiro-ministro, teria violado a lei de doações e recebido financiamentos proibidos em suas contas em 2019. As suspeitas surgiram com base em registros da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (ECFP), que funciona junto ao Tribunal Constitucional. A legenda, que aparece com cerca de 16% das intenções de votos nas pesquisas, nega as acusações. E, para tentar confrontá-las, Ventura está recorrendo ao mesmo expediente usado por Donald Trump, nos Estados Unidos, e Jair Bolsonaro, no Brasil: colocar o sistema eleitoral sob suspeição.
Essa postura não surpreende Alaor Leite, professor de Direito Penal e de Processos na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Para ele, o Chega replica em Portugal a estratégia de desqualificar e minar os Poderes constituídos, com foco principal no Judiciário. “As legendas de extrema direita se aproveitam do descontentamento de uma certa camada da sociedade, que se sente desprestigiada ante uma elite que não se comove com o sofrimento diário da população. O que é diferente em Portugal é que esse grupo já tem representação parlamentar relevante — é dono da terceira bancada da Assembleia da República. Portanto, não expressa uma insatisfação que deve ser recolhida pela política, pois já faz parte da política”, explica.
Nessa estratégia radical, acrescenta o professor, insere-se o ataque à imigração, como visto agora e que prevaleceu na extrema-direita do século passado, responsável por ditaduras terríveis, como a salazarista, em Portugal. “Esses grupos extremistas precisam encontrar uma explicação, ainda que falsa, da queda da qualidade de vida e do enfraquecimento da classe média. E optam, muitas vezes, por fatores externos, terceirizando o problema. É uma agenda natural, ainda que o país precise de mão de obra estrangeira. E cola porque ninguém é confrontado com o espelho”, afirma. Ele não esconde a preocupação com uma possível guinada do país à direita, com a possibilidade de uma coligação com a ultradireita populista para a formação de um governo.
Desinformação e manipulação
Para a cientista política Ana Paula Costa, vice-presidente da Casa do Brasil em Lisboa, as atuais eleições têm sido bastante desafiadoras em vários níveis, com novos elementos e um debate intensificado à direita e à esquerda. “Os partidos ampliaram as campanhas nas redes sociais, o que é uma mais-valia, pois alarga a discussão política na internet, mas também é um perigo, pois há muita desinformação e manipulação de fatos, sobretudo, por parte do Chega. Isso confunde o eleitor e prejudica a qualidade da democracia portuguesa”, diz. “Além disso, a imigração tem sido bastante politizada, sendo um tema de debate nos diferentes partidos e entre os eleitores”, emenda.
Na avaliação de Ana Paula, está evidente o aumento das tensões políticas e sociais a respeito da imigração, fruto de uma tentativa da extrema direita de criar guerras culturais ao associar, erroneamente, a imigração ao perigo da criminalidade e ao disseminar falsas teorias, como a da substituição dos europeus por uma população miscigenada. “Infelizmente, vimos que esse discurso, que associa a imigração ao perigo, foi mobilizado por Passos Coelho, ex-primeiro-ministro do PSD, que se posiciona no centro-direita do espectro político. Isso demonstra como a extrema direita consegue condicionar a direita democrática e definir o tom do debate político”, alerta.
Nesse contexto, ressalta a cientista política, pode-se ignorar a baixa representatividade da diversidade portuguesa na lista de candidatos dos partidos. “A inclusão de imigrantes e de pessoas diversas, comprometidas com a igualdade, a justiça social e a democracia na lista dos partidos da esquerda e da centro-esquerda, por exemplo, poderia ter sido uma mensagem sobre o profundo afastamento e o repúdio à discriminação e às falsas teorias de substituição populacional, impulsionadas pelos movimentos e partidos anti-imigração e de extrema-direita que afloram em Portugal. Apenas o Bloco de Esquerda (BE) tem uma candidata que representa a imigração em lugar elegível”, detalha.
Outros temas, como a habitação, saúde e trabalho continuam em cima da mesa, pois, segundo Ana Paula, são muito caros à sociedade portuguesa e sempre estão presentes nas campanhas eleitorais, principalmente neste momento em que o país vive uma crise de moradia. Ela assinala, ainda, que as sondagens apontam que, tanto à direita quanto à esquerda, será difícil formar um governo de maioria, e o Chega terá um crescimento notável, podendo mais que dobrar a atual bancada, de 12 parlamentares. “Na última semana, houve um crescimento da AD em relação ao Partido Socialista PS, logo, tudo indica que teremos uma Assembleia da República mais à direita e com um partido de extrema direita mais fortalecido e com mais deputados”, complementa.
Há uma década em Portugal, a brasileira Lina Moscoso, doutora em Ciência da Comunicação, diz que nunca foi tão importante a participação majoritária dos portugueses nessas eleições. Com direito a voto, por ter a cidadania lusa, ela acredita que o momento é de fortalecer a democracia, que está ameaçada em Portugal e em todo mundo. “O direito ao voto foi conseguido com muita luta, especialmente o voto feminino. Portanto, não se pode abrir mão desse dever cívico, mesmo que o partido escolhido não seja o vencedor”, afirma.
Ela enfatiza que a esquerda tem perdido muitos eleitores por conta de uma série de razões e a direita populista está conseguindo atrair os jovens, que não têm a memória do período da ditadura. “Vejo um quadro bastante complicado”, frisa.
Avaliação semelhante é feita pelo embaixador português aposentado António Luís Cotrim, que lutou contra a ditadura de Salazar e foi preso três vezes durante a Revolução dos Cravos, que restabeleceu a democracia em Portugal. “Não descarto a possibilidade de a Aliança Democrática, se tiver a maior parte dos votos, se aliar ao Chega para formar o governo. O discurso de parte dos integrantes dos dois blocos está muito parecido”, acrescenta.
Tanto Lina quanto Cotrim acreditam que pode haver surpresas nas urnas. Nas eleições de dois anos atrás, as pesquisas de intenção de votos não conseguiram captar claramente o pensamento dos eleitores. Os levantamentos, em maioria, davam vitória para o PSD, mas o Partido Socialista foi o grande vencedor, com maioria absoluta. Ou seja, não precisou de coligações para governar. O risco, acreditam, é de que, daqui a dois anos, Portugal tenha de realizar novas eleições, porque o governo caiu, e os radicais da ultradireita estejam ainda mais fortes.