Quantas vezes você respondeu uma pergunta com “sim” quando, na verdade, sua vontade era de dizer “não”? Bom, ainda que você não se considere uma pessoa com dificuldade em dizer “não”, provavelmente é incapaz de contabilizar quantas vezes deixou de dar uma resposta negativa por receio do que o outro pensaria. Um estudo conduzido, em 2022, pelo Departamento de Psicologia Comportamental da Universidade Cornell, nos Estados Unidos, concluiu que as pessoas têm mais facilidade para dizer “sim” do que dizer “não”.
O famoso “vou ver e te aviso!” após receber um convite de alguém denuncia o jeitinho brasileiro de temer desagradar ao outro. No entanto, essa atitude, aparentemente inocente, é nociva e pode desencadear grandes malefícios ao indivíduo que se anula na tentativa de satisfazer o outro.
Juliana Gebrim, psicóloga e neuropsicóloga pelo Instituto de Psicologia Aplicada e Formação de Portugal (Ipaf), explica que aprender a dizer “não” de maneira assertiva é fundamental para preservar o equilíbrio emocional e estabelecer relacionamentos saudáveis. “Quando alguém tem dificuldade em dizer ‘não’, podem surgir diversos malefícios, tais como: sobrecarga de responsabilidades, levando ao esgotamento físico e mental; e sentimentos de ressentimento, prejudicando relacionamentos e ao bem-estar emocional”.
Os malefícios causados por esse conflito não decorrem apenas em situações extremas. Quando você se sente obrigado a fazer o cartão oferecido por uma loja ou quando você compra uma roupa, ainda que não tenha gostado, só porque provou e não tem coragem de dizer à vendedora que não vai levar, também está invalidando suas vontades para que o outro não se sinta desapontado — sendo que, em muitas situações, o outro nem se sentiria mal de fato.
“Essa dificuldade pode ser influenciada por fatores como experiências ambientais, crenças enraizadas, baixa autoestima, experiências traumáticas e características de personalidade”, destaca. A psicóloga aponta que ambientes que desencorajam a expressão de vontades próprias e enfatizam a necessidade de agradar aos outros podem contribuir para essa dificuldade. Além disso, uma baixa autoestima e experiências traumáticas relacionadas à rejeição ou à punição por expressar vontades pessoais podem dificultar a recusa de pedidos ou a imposição de limites.
Algumas características de personalidade, como ser excessivamente complacente ou temer conflitos, também podem desempenhar um papel significativo para que essa dificuldade surja. “Compreender esses fatores é o primeiro passo para desenvolver habilidades de assertividade e estabelecer limites saudáveis, e a psicoterapia e a autorreflexão podem ser ferramentas úteis nesse processo”, expõe a especialista.
A professora bilíngue Indyara Moreira, 29 anos, confessa que a dificuldade em dizer não é uma característica de sua personalidade percebida desde a infância. Quando criança, no período escolar, sofria quando a professora pedia para que fizessem trabalhos em grupo. Muitas vezes fazia o trabalho inteiramente sozinha, por não conseguir negar a participação de alguém que não colaborava e por não conseguir expor a indignação de estar fazendo, desacompanhada, algo que era obrigação de todos os participantes. “Eu perdia tempo, qualidade de sono e momentos de lazer com a família para assumir a responsabilidade do outro, por eu não conseguir dizer um não”.
E essa não foi uma questão resumida apenas à escola, pois Indyara experimentou os malefícios da dificuldade em dizer “não” até mesmo na faculdade. A professora conta que o receio vinha do medo de machucar o outro e também pelo excesso de empatia, que sempre teve para com o outro. “Eu olhava o lado das pessoas e prejudicava o meu, isso foi enraizando e eu passei a ter uma dificuldade extrema. Desenvolvi uma ansiedade ainda maior sobre as decisões da minha vida por temer prejudicar o outro e esquecer que, na verdade, isso estava me prejudicando também”.
Em meio a tanto “sim” forçado, se viu imersa em cenários angustiantes diversas vezes. O auge foi quando aceitou ser madrinha de casamento, quando, na realidade, estava totalmente desconfortável com a situação e, depois de tudo encaminhado, teve de falar a verdade à noiva. “Eu fui tentando levar a situação, só que aquilo foi me consumindo intensamente e chegou num estágio em que eu falei ‘não, eu não quero ser madrinha de casamento’, e aí ficou uma situação muito desconfortável.”
Indyara conta que já manteve amizade por longos períodos com pessoas que a incomodavam, justamente por não querer colocar o outro num lugar de desconforto, mas hoje em dia reconhece que foi injusta consigo. Ela relata que há um tempo mantinha amizade com uma mulher bastante inconveniente que a deixava desconfortável, então evitava responder às mensagens e atender as ligações vindas dessa pessoa, mas que um dia, ao chegar em casa, se deparou com a moça sozinha com o seu esposo em sua casa e, em meio ao constrangimento da cena, Indyara teve de escutar que não foi comunicada da visita por ser mais fácil falar com seu esposo do que com ela.
“Ela jantava com a gente e queria passar tempos e tempos na minha casa, nos deixando desconfortáveis. Ficou cada vez mais constrangedor, pois ela ficava ligando para o meu marido e ele também começou a passar por situações chatas, mas por ter mais facilidade em dizer ‘não’, ele conseguiu cortá-la”.
Por meio da terapia comportamental, a professora conseguiu entender o quão nociva era a dificuldade e por qual razão se sentia assim. “Foi o momento em que eu senti que tinha alguma coisa errada, então nós começamos a tratar sobre questões da minha infância. Eu sempre acreditei que eu não poderia dar trabalho aos meus pais e que tinha que ser a filha perfeita que estudava, que tirava boas notas, que ia à igreja, que nunca dizia ‘não'”.
Todas as cobranças influenciaram a percepção de Indyara sobre os outros. A necessidade de ser uma filha perfeita desencadeou a autoimposição de ser a amiga perfeita, a esposa perfeita, a pessoa perfeita. “Para ser assim eu não poderia magoar o outro, então eu não poderia dizer ‘não’, estava sempre aberta e disponível para o outro”, contou.
“Depois de muita terapia intensiva, eu melhorei bastante e hoje eu consigo dizer ‘não’, falar que eu não quero sair, que eu não estou me sentindo bem, que eu não quero receber alguém na minha casa ou ir para certos lugares. É um alívio. É libertador! Quando você diz não para o outro você diz sim para você, e isso é incrível, é a melhor sensação que tem. Tem momentos que você não precisa ser empático, se a situação do outro prejudicará você”, complementa.
Indyara Moreira, 29 anos, confessa que a dificuldade em dizer não é uma característica de sua personalidade percebida desde a infância
Mari Avelar, psicóloga especialista em terapia cognitivo-comportamental e parentalidade, trabalha com mulheres e sempre percebeu, em suas consultas individuais, a presença de questões relacionadas à dificuldade de imposição e de dizer “não”. Em 2021, descobriu o livro A Síndrome da Boazinha, de Harriet B. Braiker e, baseando-se na metodologia do documento, que fala justamente sobre a compulsão por agradar o outro, decidiu abrir um grupo para pacientes que sofrem da condição.
Em 2023, a psicóloga treinou estratégias com base no material e montou um grupo com duração de 21 dias, sendo que no quinto já recebeu feedbacks extremamente positivos. O direcionamento era trabalhar uma habilidade a cada dia, para que as pacientes conseguissem um posicionamento assertivo, estabelecessem os próprios limites e aprendessem a voltar o próprio olhar a si mesmas. A especialista conta que, para ela, é muito enriquecedor atuar na questão, pois é um trabalho que enxerga a pessoa como um todo, sem colocá-la na condição de “boazinha” simplesmente pelo querer, mas pela razão que exige a necessidade de agradar.
“Eu percebo que essa dificuldade tem a ver, de fato, com as relações que são estabelecidas na infância. Claro que há casos em que as pessoas desenvolvem mais tarde essa dependência do olhar do outro, da validação do outro e por isso se tornam agradadoras de uma forma realmente compulsiva, mas existem diversos aspectos, são múltiplos motivos”, explicou.
A autônoma Luziane Aragão, 21 anos, é um exemplo real dos aspectos citados pelas especialistas, para além da infância. Quando criança, nunca se viu na posição de se colocar em segundo plano, sempre foi sincera e fazia questão de dizer quando não queria algo. Na fase adulta, porém, se envolveu em um relacionamento e aos poucos se percebeu diferente.
Luziane conta que, no início, era tudo tranquilo, saudável e normal, mas que, com o passar do tempo, passou a ser coagida pelo homem com quem se relacionava e, a cada situação, sentia menos coragem de se impor. “Minha coragem para dizer ‘não’ diminuía cada vez mais, visto que eu seguia as regras impostas pela outra pessoa, por não reivindicar as minhas vontades”.
Emaranhada nas atitudes tóxicas que estava vivendo dentro do relacionamento, percebeu sozinha, depois de muito martírio, o peso positivo de entregar a resposta negativa quando a vontade é essa. Hoje, livre dessa relação, reconhece a importância da terapia para não se colocar em segundo plano. “Acredito que, à época, a terapia teria me ajudado muito, pois eu estava sozinha, longe dos meu familiares e sem amigos próximo a mim, então eu teria tido um apoio profissional para me auxiliar a enxergar a necessidade de reverter aquela situação e procurar algo melhor para mim”, recordou.
Juliana Gebrim ressalta que, para além de afastar os malefícios de um “sim” dito por obrigação, dizer “não” também traz benefícios. “O fortalecimento dos limites pessoais, promoção da autoestima e redução do estresse são alguns dos benefícios em saber dizer ‘não’. Além disso, estabelecer limites saudáveis fomenta relacionamentos mais autênticos, nos quais as necessidades individuais são respeitadas, promovendo um equilíbrio emocional e uma sensação de empoderamento”.
Luziane Aragão, 21, é um exemplo real dos aspectos citados pelas especialistas
Ana Paula de Sena, 33, empresária, conta que teve uma ótima criação, mas que infelizmente foi ensinada a dizer “sim” o tempo inteiro, inclusive a se calar nas situações em que discordava de algo. Na infância, sempre ouvia o bordão da mãe que era: “O calado é que vence!”. Por isso, sempre que queria dar sua opinião sobre algo, escutava da mãe, que o melhor era se silenciar e aceitar a situação.
Infelizmente, esse ensinamento trouxe problemas na vida adulta. Se casou aos 16 anos e passou a aceitar tudo que lhe era imposto, inclusive agressões físicas. “Eu tinha medo de contrariá-lo, então continuava a dizer ‘não’ para mim e ‘sim’ para as outras pessoas. Cheguei a pensar que eu não podia ‘me dar ao luxo’ de dizer não”, lamentou.
Após situações extremas de humilhação, a empresária conseguiu sair da casa do marido e passou a morar com o irmão. Imediatamente se sentiu livre, pronta para recomeçar a vida de forma diferente, mas sem o apoio de um profissional da saúde para tratar as raízes do problema, passou por outras situações decorrentes da dificuldade em dizer “não”. Trabalhava em uma empresa e, por temer o desemprego, dizia “sim” para todas as demandas, sendo sua obrigação ou não. “Tive estafa emocional e fiquei de cama por 20 dias, além de ter depressão, ansiedade e ser diagnosticada com síndrome de Burnout”.
Em busca de tratamento para os diagnósticos, Ana Paula disse “sim” para si pela primeira vez. Decidiu procurar ajuda profissional, iniciando a terapia e o acompanhamento psiquiátrico. A princípio, tinha medo do que os outros pensariam quando soubessem de seus diagnósticos e tratamentos, mas percebeu, depois de uma conversa franca com a psiquiatra, que precisava urgentemente cuidar de si, senão seria internada. Foi aí que compreendeu que a compulsão em dizer “sim” para os outros era uma busca por validação.
“Com a terapia, comecei a melhorar e notar mudanças na minha vida, passei a enxergar coisas que antes não via. Eu era tão adepta ao ‘sim’, que dizia ‘não’ para momentos prazerosos, como lazer e coisas que me faziam bem. Com os tratamentos, finalmente pude me enxergar como uma pessoa, um ser humano”. O processo foi uma verdadeira jornada de autoconhecimento, na qual Ana Paula confessa descobrir gostar de coisas antes ignoradas, uma vez que a sua personalidade era moldada pelo que as pessoas queriam.
Ana Paula participou do grupo Síndrome da Boazinha, da psicóloga Mari Avelar, e declara que o processo foi significativo e essencial para tornar-se a mulher que é hoje. “Esse trabalho da Mari me ensinou não só a dizer ‘não’, mas a ter autonomia para tomar essa atitude sem enfraquecer as amizades e sem arrumar conflitos, de forma que as pessoas entendam que ‘não’ é ‘não’ e respeitem a minha decisão”, concluiu.
Ana Paula de Sena, 33, empresária, conta que teve uma ótima criação, mas que infelizmente foi ensinada a dizer “sim” o tempo inteiro
*Estagiária sob a supervisão de José Carlos Vieira