O presidente da Argentina, Javier Milei, tem buscado cumprir o que prometeu na campanha: implementar uma “terapia de choque” liberal para a crise econômica do país.
Emitiu um “decretaço” com mais de 300 medidas de desregulamentação econômica que ele disse serem de urgência e que seguirão em vigor ao menos que o Congresso o vete.
Ele também enviou ao Parlamento um megapacote com mais de 600 projetos de leis, intitulado “Lei de Bases e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos”, que ainda precisa ser chancelado pelo Legislativo, onde ele não tem maioria.
Apesar de mexer com uma ampla gama de forças sociais e econômicas, a avaliação de especialistas ouvidos pela BBC News Brasil é que o fator mais importante para que Milei consiga levar adiante seu projeto de “revolução liberal” — ou libertária, como ele define — não é conseguir o beneplácito dos parlamentares.
Não é nem mesmo resistir aos embates com os poderosos movimentos sindicais, que já marcaram para 24 de janeiro a primeira greve geral no país, com previsão de 12 horas de duração.
O fator crucial para Milei é o tempo.
Para os especialistas, o presidente terá de entregar resultados econômicos positivos enquanto vive certa lua de mel com seus seguidores — um período estimado entre três ou quatro meses —, ou as reações contrárias aos seus objetivos libertários podem ser crescentes e inevitáveis.
“O comportamento da inflação será decisivo para a avaliação e destino do governo de Milei dentro de dois ou três meses. Os preços são fundamentais”, diz o professor de ciências políticas da Universidade de Buenos Aires (UBA) Marcos Novaro à BBC News Brasil.
“Eu diria que seriam quatro meses. Mas, na minha opinião, está claro que Milei não tinha outra alternativa. A economia argentina necessita das desregulamentações e reformas que ele propõe e busca implementar”, avalia o analista econômico e ex-secretário de Energia do país Daniel Gustavo Montamat.
Montamat avalia que, se “o plano de estabilização de Milei” começar a reduzir a “febre inflacionária”, ele terá apoio da sociedade para muitas das reformas estruturais que está propondo.
“O sucesso ou fracasso desta revolução libertária dependerá dos resultados na economia”, diz o analista, crítico das políticas econômicas do kirchnerismo, derrotadas por Milei nas urnas.
A inflação na Argentina chegou a 211,4% ao ano, de acordo com dados oficiais divulgados na quinta-feira (11/01), superando até o índice da Venezuela em 2023.
A escalada inflacionária argentina ganhou ainda mais fôlego em dezembro, a partir da chegada de Milei à Casa Rosada, com a liberação do aumento de preços antes controlados, como de combustíveis e serviços públicos, além do impacto da forte desvalorização do peso.
Somente em dezembro, a inflação foi de 25,5% — o maior dos últimos 33 anos, porém, abaixo dos 30% esperados por consultorias econômicas de Buenos Aires.
Nesta semana, quando Milei completou um mês na presidência, o peso voltou a se enfraquecer.
Até no mercado de ações, em princípio animado com a vitória dele, os investidores começam a se mostrar mais cautelosos com os novos leilões de dívida do governo, segundo reportou a agência Reuters, que chamou o momento de “choque de realidade” para a Casa Rosada.
Após o anúncio, também na quinta-feira, de que o governo havia retomado o acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), o mercado voltou a comemorar, mas a cautela persiste.
A expectativa no governo Milei, de acordo com analistas, é atravessar esse deserto até abril.
Outra expectativa é que neste mês, com a maior entrada de dólares gerados pelas exportações do agronegócio — a principal fonte de divisas —, haverá “um alívio” para a economia argentina. Isso reforçaria as reservas no Banco Central e reduziria a pressão inflacionária.
A questão é quanto o colchão de popularidade e o voto de confiança dado a Milei resistirão.
O presidente foi eleito com 56% dos votos válidos, a maior votação para um chefe do Executivo nos 40 anos da democracia argentina. Entretanto, as primeiras pesquisas de opinião apontam desgaste e queda na avaliação positiva nas primeiras semanas do governo.
A empresa Opinaia indicou que Milei teve uma queda na avaliação maior do que a registrada pelo seu antecessor, Alberto Fernández, no mesmo período, segundo publicou o jornal La Nación na quarta-feira (10/1).
Do ‘agro’ aos bancários, múltiplas resistências
A “revolução liberal” ou libertária de Milei é um projeto ambicioso, já que ele propõe alterar desde o sistema de contribuição sindical a aposentadorias e regras relativas aos aluguéis, planos de saúde, medicamentos e clubes de futebol.
As mudanças propostas incluem ainda uma redução drástica do Estado, a alteração de regras trabalhistas e a privatização de dezenas de empresas públicas.
Seu governo propõe também o fim das eleições primárias, que antecedem a eleição presidencial, e o retorno do uso da toga e do martelo pelos juízes.
Nas ruas, aparecem os primeiros sinais de desconforto. Ao fazer compras nos supermercados argentinos ou nos chamados chinos (mercadinhos de bairro), se ouve as constantes reclamações dos consumidores.
Tanto entre os que votaram em Milei quanto entre os que não votaram, é possível observar um clima que vai da preocupação — forte entre aposentados e servidores públicos — à cautela, como entre empresários.
“Para mim, é difícil dizer ‘feliz ano novo’ porque estou preocupadíssima com o que ocorrerá com minha aposentadoria. É dela que vivo”, desabafa Rosa, de 84 anos, no bairro abastado de Palermo.
No setor turístico, apesar das reclamações com a inflação, em geral comemora-se.
“Há muito tempo não víamos tantos turistas”, diz o gerente de um restaurante no bairro turístico de Puerto Madero, lotado de brasileiros no fim de semana.
Há também resistências setoriais às amplas mudanças propostas.
Na próxima segunda-feira (15/01), os funcionários públicos realizarão manifestações contra medidas de Milei que os afetam. Por conta do remanejamento previsto com a redução dos ministérios, o governo prevê a possibilidade de demissão daqueles que “não se adaptarem” ou “não aceitarem” os novos postos após a reestruturação.
Eram 18 pastas no governo do ex-presidente peronista Alberto Fernández e, na gestão atual, passaram a ser nove.
As manifestações contam com o apoio dos bancários, em repúdio à intenção do governo de privatizar bancos públicos, incluindo o Banco de la Nación (equivalente ao Banco do Brasil), segundo afirmou o presidente do sindicato dos bancários, Sergio Palazzo.
Palazzo afirma que as amplas reformas de Milei “não são um plano de governo, mas de negócios”, diz o presidente do sindicato, criticando os projetos de privatização e as mudanças trabalhistas.
Neste último ponto, aliás, aconteceu o maior revés para Milei até agora. No começo do mês, a Justiça do Trabalho suspendeu medidas que faziam parte do “decretaço” — atendendo a pedidos das duas principais centrais sindicais do país, a Confederação Geral do Trabalho (CGT) e a Central de Trabalhadores da Argentina (CTA).
De acordo com o procurador-geral do Tesouro, Rodolfo Barra (com funções semelhantes às da Advocacia Geral da União no Brasil), já são mais de cinquenta recursos na Justiça contra as medidas.
A reforma trabalhista, agora suspensa pela Justiça, prevê modificações nos pagamentos das indenizações por demissão; amplia de três para oito meses o prazo de experiência; e estabelece que trabalhadores de hospitais e de escolas são essenciais e, portanto, com direitos restritos para a realização de greve.
As mudanças tocam ainda no caixa dos sindicatos ao rever o sistema de contribuição sindical dos trabalhadores.
Os protestos do funcionalismo não serão os primeiros contra o governo Milei. Desde a posse, em 10 de dezembro, foram registrados pelo menos dois panelaços em várias cidades do país.
De todo modo, as manifestações servirão de prévia para a greve geral de 12 horas programada para o fim do mês.
Enquanto isso, no setor empresarial, há a dúvida se Milei conseguirá implementar suas medidas econômicas ou se o amplo leque de artigos que enviou ao Congresso tirará o foco dos dois principais objetivos da sua plataforma de governo: combater a espiral inflacionária e reduzir o déficit fiscal.
Já o poderoso agronegócio recebeu como um balde de água fria a decisão do governo de manter e, em alguns casos, até de ampliar os impostos sobre as exportações.
A expectativa neste setor era que Milei faria o contrário — reduzir estas tarifas estabelecidas nos governos peronistas anteriores e que provocaram na época ampla reação.
Relação com o Congresso e Forças Armadas
As movimentações sociais e setoriais acontecem enquanto a Argentina ainda digere o estilo considerado controverso do governo e de seu novo presidente — que repete todos os dias que o país está numa emergência e precisa ser refundado, razão pela qual ele precisaria de instrumentos especiais para governar.
A postura do governo inclui declarações como as de seu porta-voz, o economista Manuel Ardoni, que atribuiu a nova alta do dólar e a brecha entre a cotação do oficial e do paralelo à oposição daqueles que se colocam contrários aos projetos do governo.
A ideia de urgência está na base do discurso do governo Milei. Primeiro, ele anunciou “dez medidas emergenciais” para lidar com a crise econômica. Depois, foi a vez do “decretaço”, por meio de um Decreto de Necessidade e Urgência (DNU).
Com 366 pontos, o DNU prevê, entre outros itens, uma “emergência pública” em temas econômicos, fiscais, sociais, entre outros, até 2025. Trata-se de um instrumento até mais poderoso do que a medida provisória (MP) brasileira, já que seguirá em vigor a menos que o Congresso a derrube por ampla maioria — ou o que a Justiça o faça.
O presidente também enviou o megapacote de projetos de leis apelidada de “Lei Ómnibus” e tem repetido que negociar quaisquer dessas medidas no Congresso dificultaria sua pretensão de transformar a Argentina “após cem anos de decadência”.
O problema é sua frágil situação no Parlamento. À exceção de seu partido A Liberdade Avança, todos as outras siglas rejeitam um estado de emergência econômica tão amplo até 2025, por exemplo.
Na terça-feira (9/1), foram iniciados nas comissões da Câmara dos Deputados os debates acerca da “Lei Ómnibus” — e autoridades do governo Milei sinalizaram pela primeira vez com a possibilidade de negociação de prazos.
O governo quer aprovar um projeto para que o Executivo possa, por um período determinado e excepcional, tomar medidas sem que seja necessário que elas passem pelo Congresso.
Inicialmente, a Casa Rosada tinha previsto um período de dois anos, renováveis por mais dois — o que, no total, seria o equivalente a um mandato inteiro —, mas está sendo negociada a possibilidade de que se reduza para um ano, renovável por mais um ano.
“Quando falamos sobre atribuições especiais [para que se apliquem medidas sem o Parlamento], não queremos fechar o Congresso, não queremos um cheque em branco, mas atingir os objetivos dos projetos do governo”, disse o secretário de Energia, Eduardo Chirillo, diante dos questionamentos dos parlamentares nas comissões.
A cientista política Ximena Simpson, professora da Escola de Política e de Governo da Universidade Nacional San Martin (Unsam), da Argentina, afirma que Milei está “se dando conta que dependerá da casta para governar”.
Na campanha, a “casta” foi definida por Milei como a “velha” elite política e econômica, e era um dos alvos das críticas do então candidato.
“Ele precisará fazer coalizões partidárias para implementar, mesmo que parcialmente, sua agenda ambiciosa”, avalia Simpson.
Na visão dela, o debate sobre a Lei Ómnibus será “crucial” para se saber qual Argentina “surgirá destas propostas”, já que Milei “está buscando mudar uma era” da Argentina.
Como se trata de um pacote de leis regulares, não há prazo limite para o debate. Seja como for, o papel da oposição será decisivo, diz Simpson, para se saber se Milei conseguirá ser “tão disruptivo” como tem planejado.
O analista chileno-americano Ricardo Israel, do Instituto Interamericano para a Democracia, com sede nos Estados Unidos, entende que a democracia não pode se limitar à voz e à caneta presidencial.
“Até o momento, Milei não está compartilhando este poder, mas compartilhar e negociar serão inevitáveis. Ou será inevitável que a insatisfação chegue às ruas”, diz Israel, que foi candidato à presidência do Chile em 2013.
Segundo ele, o governo espera “que não surja alguma forma de violência” se os resultados (como a queda da inflação) demorarem.
“Lembremos como foram os governos de Alfonsín e De la Rúa, que tiveram o problema da violência nas ruas”, aponta.
“[Nos últimos tempos] A Argentina, no geral, resistiu melhor do que Chile, Equador e Colômbia. Mas ninguém pode garantir que isso continuará como está hoje à medida que os meses passem e a situação econômica não melhore”, seguiu Israel.
Os ex-presidentes Raúl Alfonsín e Fernando de la Rúa, que como Milei não eram peronistas, não conseguiram concluir seus mandatos diante da insatisfação popular e dos protestos em meio a crises políticas e econômicas.
Alfonsín governou o país de 1983 a 1989, tendo renunciado cinco meses antes do término do seu mandato. Já De La Rúa assumiu o poder em 1999 e governou até 2001, quando também renunciou.
O analista Marcos Novaro ressalta, porém, que, ao contrário do esperado, neste primeiro mês Milei não mostrou problemas de governabilidade, mas sim de definições de rumo dentro do seu próprio governo.
“É preciso definir o rumo e colocar o foco nas prioridades, como o combate à inflação e ao déficit, mas estamos diante de uma série de medidas que pretendem implementar tudo ao mesmo tempo”, disse.
Nesta semana, Milei se confrontou com um limite importante: teve que fazer um recuo após ter provocado a aposentadoria automática de 22 generais do Exército.
Essa aposentadoria ocorreu porque o novo chefe da força escolhido por Milei tem menor tempo de carreira do que aqueles que foram aposentados compulsoriamente.
Depois de reconhecer o problema, o governo anunciou que a maioria desses generais seguirá nas Forças Armadas ou no Ministério da Defesa, segundo reportagem do jornal Clarín.