Ao longo dos dois últimos anos, a maneira como as sociedades passaram a lidar com a pandemia e a disseminação do virus mudou muito, indo de agressivas medidas de contenção e isolamento dos infectados a uma visão mais prática e palatável, aprendendo a viver com o novo patógeno e procurando aumentar nosso entendimento sobre como enfrentá-lo sem ter de apelar para os lockdowns e seus terríveis efeitos na economia.
Apesar das vacinas se mostrarem extraordinariamente eficazes em evitar os piores efeitos da doença, sobretudo nos mais idosos e imunocomprometidos, ainda assim o novo coronavirus adquiriu mutações com o passar do tempo que deram às novas variantes a capacidade de evadir tanto os anticorpos conferidos pela vacina como os do sistema imunológico em si, tornando-se ao longo do caminho no que alguns infectologistas consideram o virus mais contagioso da história.
Esse fato, aliado ao cansaço e resignação global perante a onipresença do coronavirus, levou à necessidade de desenvolver fármacos que pudessem combater os efeitos mais deletérios da Covid-19 após um paciente ser infectado, evitando que os sistemas de saúde entrem em colapso como vimos em várias partes do planeta durante os momentos mais críticos da pandemia. Os maiores laboratórios do setor farmacêutico responderam rapidamente ao chamado, criando medicamentos como paxlovid (Pfizer), remdesivir (Gilead) e molnupiravir (Merck), que já foram aprovados para uso emergencial por todas as mais importantes agências reguladoras sanitárias do mundo.
No entanto, mesmo antes da pandemia o setor “farma” já vinha ampliando sua relação com o desenvolvimento tecnológico de ponta e, consequentemente, com um crescente ecossistema de start-ups. Para além dos grandes laboratórios, diversos novos players entraram no mercado, amparados em financiamentos de fundos de investimento e na capacidade de gerar, em prazo relativamente curto de tempo, resultados positivos com alta aplicação de tecnologia e inovação. Nesse contexto, e pensando nas relações com o Brasil, nas quais entraremos mais a frente, um dos atores que chama atenção é a Kintor.
Proxalutamida é o carro-chefe entre os produtos da farmacêutica chinesa
Fundada na China em 2009, a Kintor Pharmaceuticals é uma empresa de biotecnologia cuja principal missão é desenvolver tratamentos para doenças relacionadas ao excesso de produção de andrógenos — os chamados hormônios “masculinos” como a testosterona e o DHT—, incluindo cânceres de próstata, mama e fígado, Covid-19, alopecia, acne e outras enfermidades que ainda carecem de tratamentos efetivos.
Os produtos da Kintor são principalmente anti-androgênicos, que inibem os receptores de andrógenos e diminuem os efeitos do excesso de produção desses hormônios no corpo humano. Atualmente o carro-chefe da Kintor, a proxalutamida é um desses anti-androgênicos cuja molécula foi originalmente desenvolvida para combater cânceres de próstata e mama mas que, com a chegada da pandemia, passou a ser aplicado em pacientes infectados com Covid-19 em estudos clínicos MRCT de Fase III.
Publicado em abril de 2022, o estudo mais recente mostrou resultados extraordinários, com uma redução de 100% em hospitalizações e mortes em casos de Covid-19 moderada após sete dias contínuos de tratamento, sobretudo em pacientes mais idosos, o que demonstra o enorme potencial da proxalutamida no combate ao coronavirus e ao sobrecarregamento dos sistemas de saúde.
Laboratório até hoje não possui representantes oficiais no Brasil
Apesar de ainda não ser um player central do mercado, a Kintor se inseriu com credibilidade entre os novos pesquisadores e desenvolvedores de medicamentos de ponta, com uma presença internacional, investimento considerável em pesquisas e, pelo tipos de produtos com os quais trabalha, amplo espaço para crescer. Isso tudo com evidente ambição e capacidade de concorrência, como evidencia a presença da empresa na concorrida bolsa de Hong Kong e a estrutura para aplicar estudos clínicos em países com agências altamente gabaritadas, como a FDA americana e a EMA da União Européia.
É por isso que parece estranho que, embora tenha investido pesado para testar o seu principal produto, a proxalutamida, no Brasil, a empresa se comporte praticamente como um fantasma por aqui. Não tem representação oficial, não tem contatos com instituições correlatadas no setor, não se inseriu em nenhuma rede da área, e também não fala com a mídia, especializada ou não.
Os únicos contatos públicos e notórios da Kintor no Brasil são com figuras no mínimo suspeitas — e altamente politizadas— como o endocrinologista Flavio Cadegiani, que teria fortes ligações com setores e parlamentares bolsonaristas e cujo polêmico estudo com proxalutamida em pacientes de Covid-19 foi interrompido pelo Conselho Nacional de Ética em Pesquisa e denunciado como crime contra a humanidade no relatório final da CPI da Covid; ou a Samel, conglomerado de saúde do Amazonas nos quais os referidos testes foram conduzidos e que teria feito parte, ainda, do esforço apócrifo do governo federal em prol do ineficaz “kit covid”, ao lado de drogas comprovadamente ineficazes contra o coronavirus como hidroxicloroquina e ivermectina.
Inclusive a Samel está envolvida em um imbroglio legal com o Grupo Globo de comunicação, tendo conseguido uma liminar para censurar o jornal O Globo e a jornalista Malu Gaspar, que reportou em sua coluna sobre os famigerados estudos de Cadegiani com a proxalutamida no Amazonas. A decisão de primeira instância foi eventualmente revertida e as reportagens em questão voltaram a ser publicadas online.
Falta de diálogo com a imprensa brasileira gera desconfiança
Por que a Kintor insiste em usar os resultados do estudo de Cadegiani para conseguir a aprovação da proxalutamida? Por que escolheu não divulgar os extraordinários resultados de sua mais recente pesquisa clínica com o medicamento nos grandes meios de comunicação? Por que não se pronuncia oficialmente perante esses pesados questionamentos?
A empresa tem planos no Brasil? Se sim, quais são, e porque não os revela?
O hermetismo da Kintor a torna uma entidade inescrutável não só para o público em geral como também para as autoridades de saúde pública brasileiras.
Cabe à sociedade decidir até que ponto sua confiança vai diante de tamanha impenetrabilidade.