Com as fragilidades mais expostas pela economia em estado letárgico, não para de crescer nos últimos três anos o número de grandes empresas que recorrem à recuperação judicial no país. De janeiro a novembro, o instrumento foi o socorro para 123 companhias de maior porte, mostram os dados compilados pela Serasa Experian.
Em relação ao mesmo intervalo do ano passado, a alta é de apenas 2,5%, mas 120% acima de 2011, quando os pedidos de amparo à Justiça caíram ao menor patamar após a crise global.
Criada há uma década para substituir a concordata, a legislação é considerada por especialistas mais eficaz para evitar a falência e tentar manter empregos, embora em casos de crise mais aguda, como o do grupo Inepar, os postos de trabalho também desapareçam. O conglomerado é controlador da Iesa Óleo e Gás, empresa que deixou na mão quase mil trabalhadores em Charqueadas após ser envolvida na Operação Lava-Jato. Além de uma trégua na cobrança de dívidas, a aprovação da recuperação judicial exige um plano para reerguer o negócio.
Apesar de a Serasa não disponibilizar dados estaduais por porte, chama a atenção no Rio Grande do Sul a lista de grupos grandes e tradicionais que recorreram ao instrumento este ano. No varejo, a relação inclui a Manlec, da Capital, e os supermercados Peruzzo, de Bagé, a quarta maior rede do Estado. Na indústria, a Tomé, de Caxias do Sul, uma das principais fundições gaúchas, e a SüdMetal, com sede em Gravataí e com seis fábricas na Região Metropolitana. No agronegócio, a mais conhecida é a Camera, de Santa Rosa.
Problemas internos são primeiro sinal de aperto
Entre quem lida com o tema, também há a percepção de que o problema se agravou. À frente da Vara de Falências, Concordatas e Insolvências de Porto Alegre, a juíza Eliziana Perez contabiliza 12 novos casos este ano, o dobro de 2012 e 2013.
— A situação da economia parece ser o grande motivador. Há muito comprometimento com bancos. E talvez as empresas estejam sendo orientadas de que é um mecanismo que pode evitar uma futura falência — avalia Eliziana.
Professor de recuperação de empresas na PUCRS, o advogado João Pedro Scalzilli, sócio de uma banca voltada à área corporativa, percebe o mesmo. Há dois anos, tinha apenas um cliente em recuperação judicial. Hoje, são 10.
— O contexto econômico não é positivo. O ambiente para as empresas está bastante hostil — avalia Scalzilli.
Mesmo que fatores externos possam precipitar a busca pela alternativa, o aperto costuma começar com problemas internos. Entre eles, briga entre sócios, conflitos sucessórios, gestão deficiente e avaliações erradas em momentos de euforia que levam a investimentos, expansões e aquisições, muitas vezes à base de endividamento, que depois cobram a conta.
Para o economista Luiz Rabi, da Serasa Experian, parte da maior procura pela recuperação judicial também pode ser creditada ao fato de ser um instrumento relativamente novo. Mesmo assim, a legislação é considerada um avanço.
— A concordata visava apenas a quitação dos débitos. A continuidade da vida da empresa não era algo precípuo. É um avanço porque a finalidade é que a empresa saia da recuperação operando — compara Rabi.
Chance para se reerguer
Conhecida pelos motoplanadores Ximango vendidos até para a força aérea dos Estados Unidos, a Aeromot é uma das 323 empresas gaúchas que pediram recuperação no Estado desde 2005. Nos galpões da indústria, na zona norte da Capital, o burburinho de uma centena de trabalhadores foi substituído pelo silêncio quase total. Hoje, são sete funcionários.
— É melancólico. Mas quero ver isso aqui voltar a funcionar — diz esperançoso o presidente da empresa, Claudio Barreto Viana, 83 anos.
Uma das precursoras da indústria aeronáutica gaúcha e fornecedora da Embraer, a Aeromot enfrenta uma recuperação judicial desde 2009. O golpe mais duro veio do recuo do governo federal de adquirir 30 motoplanadores para patrulhamento, após a empresa investir pesado para desenvolver e homologar um sistema acoplado nas aeronaves que capta e envia imagens em tempo real. Hoje, a Aeromot fatura apenas com a venda de peças de reposição. Para retomar a produção, diz Viana, seria necessário uma encomenda de pelo menos seis Ximango.
Caso conclua o processo com êxito, a Aeromot passará a integrar o seleto grupo de companhias que conseguiram a recuperação com o aval da justiça, um número que — embora não existam estatísticas precisas — ainda é pequeno, admitem especialistas. No Estado, empresas tradicionais como Kepler Weber, Navegação Guarita e Lojas Obino pertencem ao pequeno grupo que deu a volta por cima.
Na Navegação Guarita, dívidas de cerca de R$ 150 milhões com bancos, feitas para realizar investimentos que não tiveram retorno no tempo esperado, levaram a companhia a pedir recuperação judicial em julho do ano passado.
— A empresa foi protegida pelo Poder Judiciário até que chegasse a um bom termo com as instituições financeiras — conta o advogado Flavio Luz, que trabalhou no processo.
Com a renegociação, o plano de recuperação sequer precisou ser homologado e, em dezembro, a Navegação Guarita conseguiu abrir mão do auxílio da Justiça para ser preservada.
Negociação prévia acelera resolução de crises
Mesmo que exista consenso sobre as vantagens da recuperação judicial na comparação com a concordata, ainda há um caminho a percorrer tanto no aperfeiçoamento da legislação quanto no aprendizado das empresas de como aproveitar a oportunidade para superar uma crise. Para a juíza Eliziana Peres, um dos principais erros é requerer a recuperação na Justiça sem ter uma negociação prévia com os credores.
— O plano tem de vir negociado com os credores e precisa ser plausível, executável. Em grande parte, a provação do plano vai depender dos credores. Outro equívoco é que as empresas entram com o pedido e acham que o Judiciário tem de resolver o problema. Mas é ela que vai trazer a forma. A gente só vai fiscalizar — observa.
João Pedro Scalzilli, professor de recuperação de empresas na PUCRS, lembra que algumas dívidas não entram hoje na recuperação judicial. É o caso dos adiantamentos de contratos de câmbio (ACC), o que dificulta o acesso das exportadoras ao instrumento. Pendências fiscais, por enquanto, também não têm mais prazo.
— Ainda não está regulamentado — diz Scalzilli.
O especialista afirma também que, em regra, as reestruturações bem-sucedidas são aquelas em que a empresa pede recuperação judicial de forma preventiva. Ou seja, não espera as dívidas se transformarem em uma bola de neve gigantesca e impagável, o que torna o instrumento apenas uma tática para retardar a falência.
DESFECHOS POSSÍVEIS
Apesar da ideia original ser revigorar a empresa, a recuperação judicial pode ter outras consequências
1ºEmpresa encerra o processo com a mesma configuração e volta a crescer. Ex: Lojas Obino e Eucatex.
2ºVenda para outros grupos. Ex: Centrais Elétricas do Pará (Celpa), absorvida pela Equatorial Energia, e Infinity Bioenergia, comprada pelo grupo Bertin.
3ºCredores se tornam sócios e reestruturam a empresa. Ex: OGX, do ex-bilionário Eike Batista.
4ºAtivos principais vendidos para outra empresas. Ex: Varig, com marca e slots arrematados pela Gol, e LBR Lácteos, que repassou unidades a diversas empresas.
ENTENDA A RECUPERAÇÃO JUDICIAL
O que é
Saída jurídica para tentar superar uma crise na empresa, mantendo a atividade, os empregos e, ao mesmo tempo, os interesses dos credores. O objetivo é evitar a falência.
Como é solicitada
O pedido é feito ao Judiciário. Aceita a ação, a empresa tem um período de proteção de 180 dias contra execuções dos credores. Em 60 dias, deve apresentar um plano de recuperação. A aprovação do plano é feita pelos credores.
O destino das dívidas
As execuções dos credores são inicialmente suspensas por 180 dias. Se o plano for aprovado, as obrigações anteriores ao pedido são modificadas de acordo com cláusulas e condições estipuladas no plano.
O que deve conter um plano de recuperação
Todas das medidas projetadas para superar a crise. Entre as mais comuns, estão parcelamento, descontos (deságio), substituição de taxas de juro e venda de ativos para quitar pendências.
Como se encerra o processo
Depois de aprovado o plano, o processo segue por dois anos, período no qual a empresa precisa prestar contas ao Judiciário. O descumprimento de qualquer obrigação pode levar à falência. Encerrado o prazo, as obrigações ainda não cumpridas serão tratadas extrajudicialmente.
Fonte: Zero Hora